E o Homem criou "A Bruxa", por Cecília Shamá

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Que uma biblioteca famosa tenha sido amaldiçoada por uma mulher é motivo de total indiferença para ela. Venerável e calma, com todos os seus tesouros seguramente trancafiados em seu seio, ela dorme complacentemente, e no que me diz respeito, há de dormir para sempre. Nunca despertarei esses ecos, nunca buscarei hospitalidade, jurei enquanto descia os degraus enfurecida”.  (Virginia Woolf/ Um teto todo seu) Natureza e Mulher são dois pontos de congruência no filme A Bruxa (Robert Eggers, 2015) onde o horror ou o terror são construídos para além dos paradigmas de gênero cinematográfico, encerrando mais nas mentes e anseios de seus personagens a escatologia do medo para além do jorro de sangue. Os simbolismos do filme retratam a erosão do desgaste sexual, familiar, geográfico e religioso do núcleo familiar retratado. A necessidade da fuga através da quebra do antigo mundo religioso e patriarcal para o novo mundo mundano e feminino representados na floresta que cerca a família e em especial a filha mais nova, Thomasin, são binômios de um cinema intimista visto em adaptações literárias como O Amante de Chatterley (Pascale Ferran,2006), O Piano (Jane Campion, 1993), Madame Bovary (Claude Chabrol, 1991), entre outros. [caption id="attachment_1277" align="alignleft" width="195"]ceci “As três idades da mulher e a morte”, de Hans Baldung Grien, 1540.[/caption] Aqui, a narrativa, vendida através do trailer como um terror de proporções épicas, nada mais é que um filme esteticamente pastoral e, em seu núcleo, um drama familiar. Os questionamentos pessoais dos personagens são colocados como reação a uma natureza selvagem e desconhecida, portanto imprevisível, não mais contida no humano e no animal da aldeia. Thomasin, como Lady Chatterley, busca sua sexualidade na floresta e no campo; e, assim como Emma Bovary está encerrada no casamento e no campo, Thomasin está presa a sua família. A bruxa do título, apresentada se banhando no sangue do bebê não batizado e que benze sua vassoura com o mesmo sangue com intenção de rejuvenescer e ter poderes demoníacos, não procura ser uma pérola do cinema da indústria da matança, ou uma celebridade no mundo do susto, ela concatena-se ao horror propriamente dito, ao subconsciente da vontade feminina, ao medo de envelhecer, de passar fome, de sentir o orgasmo sexual quando dança nua diante de uma fogueira numa clareira em qualquer idade, quando precisa densonrar pai e mãe dentro de suas religiões para chegar ao clímax da transcendência divina, mesmo que tal divindade venha do submundo e não do céu. Eggers procura mapear a estrada das lendas urbanas com que cresceu na Nova Inglaterra, contando em formato claustrofóbico a busca por si mesma da adolescente rebelde que nos confessa logo de início, em close no seu rosto angelical que pecou em pensamento e atos contra o Puritanismo adotado pelos pais. O diretor cresceu rodeado de lendas sobre bruxas, selvageria e desconhecido, ali onde se fundou os EUA, na violência, no desbravamento das florestas, na matança da caça, na opressão feminina, na vaidade do explorador e conquistador do patriarcado. Nos diz William, o pai da família, em estado de graça religiosa: - “O que desejamos achar diante da selvageria? Deixando para trás nossas terras, nossos antepassados, nosso país, nosso lar. Por o quê? Pelo Reino de Deus”. Em 1960 Clarice Lispector publicou Laços de Família, coletânea de contos sobre as amarras que nos prendem a quem amamos, a quem aprendemos a amar ou à situação familiar sufocante que nos foi designada como espécie de obrigação social. O conto, pequena narrativa de caráter ficcional, trata da representação do homem enquanto ser social e emotivo, encerrada em um lugar.  Nesse livro, seja homem ou animal, o universo conspira contra o avanço da transgressão, e a epifania passa a ser elemento de consciência de uma sociedade falha, que ainda se encontra, mais de cinquenta anos após a publicação do livro, em contraste com o avanço tecnológico. Esse aspecto de morte e consciência de si é o elemento de maior transgressão dos Laços de Família de Clarice e dos nossos, o pensar diferente, o agir diferente, mesmo que fiquemos entre as quatro paredes de nossas casas. Mas que nossa mente divague por colinas, bondes, jardins e para além da racionalização do sentir. Dessa forma, o estado de pós-modernidade e o estado de espírito do sujeito globalizado em confronto com os peregrinos norte-americanos causa uma fissura na identidade desse indivíduo, que vive no depois de sua existência, no pós da modernidade, dos movimentos que antecederam o agora. Tem sido difícil para imaginações cercadas pela cultura dos impulsos imediatistas do cinema e dos meios de comunicação atuais, enxergar a validação da entrega da personagem feminina ao empoderamento através da perda de sua alma cristã. A busca do lar, do conselho do Velho para com o Novo, ambienta geográfica e emocionalmente a perene solidão pós-moderna das relações humanas dentro e fora do cinema, dentro e fora de sua própria família. A bruxa é uma narrativa literária em forma de cinema, um conto recontado por seu diretor, onde perpassa o caminho da oralidade e da queda das instituições, como Edgar Alan Poe em poucas páginas narra em seu conto A queda da casa de Usher (1839). Papel ainda em construção enquanto conceito, a teoria pós-moderna se aplica ao estado de espírito dos diretores e dos espectadores do agora, e do olhar dos mesmos sobre o mundo material e o universo fantástico cru de Eggers. O mal não está em animais imaginários ou em dragões cercando castelos, a bela mocinha não será salva pelo príncipe encantado, e os animais não cantam mas sussurram palavras que gostaríamos de ouvir apenas entre quatro paredes. Robert Eggers passou cerca de quatro anos trabalhando na atmosfera de isolamento a que a família é jogada quando expulsa de sua comunidade por excesso de religiosidade do pai e apagou o mundo exterior através da paleta neutra do figurino e da fotografia do filme, com exceção de algumas sequências coloridas pelo misticismo do Oculto. A câmera panorâmica nos dá a floresta como perdição da alma e acolhimento do Mal, nos animais e nos humanos que ali residem. O inglês arcaico empregado pelos personagens dita o tom lírico de A Bruxa, onde os belos diálogos são repassados com naturalidade, fazendo com que em 2016 vivamos em séculos passados em menos de duas horas de filme. Esse teor de narrativa oral passada de geração em geração é trabalhado nas referências do filme; a capa vermelha da bruxa, uma maçã oferecida a uma criança, um bode preto, uma taça de prata vendida pelo pai em troca do mesmo bode chamado Black Philip, o irmão mais novo tentando ter o papel de chefe substituto da família e os gêmeos Jonas e Mercy, que parecem anões grotescos de quadros de Diego Velázquez: [caption id="attachment_1279" align="alignleft" width="300"]ceci Os gêmeos Jonas e Mercy em cena do filme A bruxa[/caption] [caption id="attachment_1280" align="alignleft" width="239"]ceci2 O Anão Francisco Lezcano, Ou O Menino de Vallecas (1645). Diego Velázquez. Óleo sobre tela, Museu do Prado (Madrid)[/caption]             Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, João e Maria todos ressignificados pelo diretor em sua visão das lendas que ouvia. A oralidade que fez do conto uma herança de nossos antepassados: “No universo da romancista, o ambiente é Espaço e o Espaço meio de inserção da existência”, Benedito Nunes, O mundo imaginário de Clarice Lispector. Quando eu era criança meu avô paterno possuía um compilado de histórias de horror mundiais com o qual me dava para passar o tempo enquanto ia fazer suas coisas. Esse ato de ler o horror simbólico me marcou profundamente, pois as fábulas cruas repassadas de meu avô para mim me assustavam e me atraiam, fazendo com que eu me perguntasse se não seria eu uma criança ruim, uma neta ruim, uma filha ruim, uma menina maliciosa. Eu lia cada volume com fervor e curiosidade, todo sábado. Assim como Thomasin meus pensamentos ficavam entre quatro paredes e entre folhas, linhas, palavras. Como Thomasin e como todas as adolescentes do mundo o embate entre meus pais e suas duas filhas permeiam nossa estrutura familiar desde sempre, desde minha infância até minha atual fase adulta, em que mantenho colaboração fiel com minha irmã. Como Thomasin o mundo ainda está se despindo do fanatismo para embarcar na seita do Agora, do momento presente, da quebra das instituições, no empoderamento feminino, na chance da sexualidade ser mais do que a cota obrigatória de imagem no audiovisual. Esse desmoronar do antigo está também presente no Pai de Guimarães Rosa em A terceira margem do rio. A quebra da identidade do mais velho como aquele contador sábio, dos quais nos baseamos para nos guiar durante a vida começa por se perder no pai de A terceira margem do rio. Determinado em sua perene solidão, o pai da família se afasta e constrói para si uma canoa, desvencilhando-se dos anos e dos filhos, da esposa, da casa e de si mesmo, sem propósito visível. É a culpa, culpa, culpa, três vezes maldita culpa do não saber, do invisível e inexplicável que gera no filho mais velho a inquietude para com o gesto do pai: será ele destinado a ser o espectro que lhe acena do barco ao término do conto? Será ele um homem sem família, preso à atitude egoísta do pai, que tomará para si os remos da vida na canoa, mesmo que o tenha feito ao não conseguir construir para si um alicerce próprio? A solidão da terceira margem que sempre espera, perene, como o fluxo do rio, deixa como órfão o antigo menino, agora homem que cabelos brancos, a esperar para sempre um pai que nunca teve, vive sem fôlego a vida que lhe restou. Enlouquecido, gasto, o velho pai de Guimarães Rosa em nada acrescenta, não aconselha, emudece e com ele a vida dos que estão ao seu redor também se esvai, como a correnteza apática do rio: “... E, eu, rio, abaixo, rio a fora, rio a dentro-o rio.” Canta o filho ao fim. A bruxa coloca seus protagonistas como culpados pelo teor humano de seus desejos e anseios de liberdade e da maldade representativa de um folclore constituinte das raízes geográficas e emocionais dos fundadores de uma nação opressora em seu presente, passado e futuro. Como os contos de nossas infâncias, permanece em constante embate entre o mundo real, a materialidade do agora e a ressonância do passado cultural, entre literatura e cinema, familiar e sintoma emocional coletivo. Como quando eu lia quando menina os contos de meu avô e quando pude ver a adolescência de Thomasin sendo levada embora para dar lugar à sobrevivência do jeito que lhe foi possível, elevando-se através das Trevas para a Luz de sua juventude breve e perigosa, como as chamas da fogueira que a atraem e que queimariam mulheres ao longo de nossas existências. A Bruxa se passa trinta anos antes dos Julgamentos de Salem e da paranoia sobre o feminino e o ocultismo que marginalizariam a cidade de Salem como marco de histeria e opressão. No quadro que abre o texto, “As três idades da mulher e a morte” do pintor Hans Baldung Grien, vemos uma bela mulher segurando um espelho no tempo presente, enquanto sua versão criança puxa suas vestes de forma travessa e do outro lado do espelho uma senhora está como que em desespero por seu tempo que se esvai, representado pela ampulheta da Morte, que a sustenta levianamente em cima da cabeça da jovem. Tal quadro pode ser o resumo da vida de A bruxa enquanto filme e documento literário de uma época específica. O medo. A velhice. A infância. A juventude. O tempo. O horror. O subconsciente. Da Bruxa. still-of-harvey-scrimshaw-and-anya-taylor-joy-in-the-vvitch_-a-new-england-folktale-(2015)-large-picture  

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