Eles Voltam e o reconhecimento da identidade

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eles-voltam---divulgacao Quando escrevi a resenha sobre Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2012), publicada neste blog em abril de 2014, falei da percepção que é possível se ter do filme quando inserido dentro do contexto taxativo de Cinema Pernambucano. Não ignorando a importância desse contexto para o filme, eu senti a necessidade de voltar a escrever sobre ele tanto por sentir que é o filme mais injustiçado do Estado na década atual quanto por ele compor agora um corpo de objetos sugerido por Angela Prysthon para uma pesquisa sobre Cinema e Paisagem. O que motiva a escolha do filme em uma pesquisa do tema é a relação entre a protagonista Cris (Maria Luiza Tavares), uma garota de 12 anos deixada sozinha pelos pais e o irmão no meio de uma estrada que sai da cidade de Tamandaré em direção à capital pernambucana, e a paisagem. Está claro que uma transformação é imposta pela paisagem a Cris com certo grau de didatismo sociológico. No primeiro momento do abandono, Cris é descoberta por um garoto da região, um pouco mais velho que ela, que oferece ajuda e a conduz a um abrigo seguro. A comunidade local resgata Cris da estrada e da incomunicabilidade de classe média que evidentemente afeta a garota (ela não é capaz de se impor ao irmão ou definir a si mesma e à própria situação). O resultado da aproximação de Cris com uma vivência social que até então ignorava é uma personagem menos alienada e mais aberta à comunicação e à sua própria presença na cidade. Todas as evidências da transformação de Cris só são dadas pelo filme depois do retorno da personagem ao Recife. Ela confronta o avô e vive um passeio de ônibus pela Avenida Boa Vista. Cris, que se destacava em sua presença passiva em Tamandaré, por sua cor, suas roupas e sua própria passividade, passa a compor ativamente a paisagem recifense. Mas Tamandaré tem para a personagem mais do que um papel de exposição social e contraste: é ali que Cris constrói sua identidade. Eu acho que Eles Voltam é particularmente genial neste ponto. A experiência de Cris, que antes não pertencia nem a Tamandaré, nem ao Recife, nem a uma classe porque não reconhecia nenhuma dessas coisas, não a aproxima das pessoas que encontrou em Tamandaré, mas da sua própria identidade urbana e de classe média. Cris não recusa sua classe, mas entende em Tamandaré que faz parte de uma e que existe dentro de uma cidade, mesmo que não seja aquela. Aí está a importância de resgatar o caminho que leva Cris até Pri (Irma Brown) e a relevância da segunda personagem para a primeira. Depois de viver algum tempo com a família de Fátima (Mauricéia Conceição) e de perceber a distância entre ela e eles, Cris foge e entra no condomínio onde antes estava a sua família. É a primeira vez no filme em que a protagonista toma uma escolha por si mesma. Ela se esconde na casa de praia dos pais e observa Irma Brown fazer sexo com um rapaz na piscina. Estabelece-se nessa cena uma conexão de identidade entre Cris e Pri que é, acredito, reforçada pelo filme na falta de presença do rapaz. Ele se torna apenas uma representação da sexualidade formada de Pri e da construção da sexualidade de Cris. Quando conversam sobre ele, não falam desse personagem sem rosto e voz (não podem falar, ele não existe), mas se aprofundam no reconhecimento de Pri da própria identidade. Na última cena em Tamandaré, Pri e Cris passeiam em silêncio pela praia. É uma cena longa, contemplativa; o momento reconhecimento, por parte de Cris, das várias relações de proximidade e distância. Ela passa a entender o papel que sempre ocupou em Tamandaré e que voltará a ocupar no Recife. Não estou tão disposto a dizer que Eles Voltam comete um erro ao voltar para o Recife. É certo que o filme abre mão do mistério da identidade e da transformação de Cris, mas nem todas as coisas precisam permanecer em silêncio em respeito à abstração do contato entre o espectador e o filme. Eles Voltam se explica e se vende, e não tenho nenhuma intenção pejorativa nessa afirmação. Eu vi o filme pela primeira vez acompanhado por uma turma de oitava série de uma escola particular de classe média, e o interesse dos garotos foi expresso por eles mesmos em um debate com o diretor. Se há a possibilidade de o filme resgatar a função que Tamandaré e Pri têm na construção de identidade de Cris para um público que pode usufruir diretamente desse resgate na construção da sua própria identidade, por que deveria se recusar a fazê-lo?