Esta conversa que tive com Francisco Cannalonga

Escrito en BLOGS el
Esta conversa que tive com Francisco Cannalonga, colega paulista, não foi nada planejada para publicação. Como é usual do improviso a riqueza, terminou sendo um papo bacana sobre o muito curioso Brasil S/A, longa-metragem de Marcelo Pedroso. A conversa, como vocês verão, vai além do filme no que eu insisto em pautar um rancor meu com certo tipo de cinefilia. Ela começou comigo declarando o meu amor por Broadway Danny Rose (Woody Allen, 1984), menção recebida com desdém por Francisco.

Brasil S/A

Cesar: Broadway Danny Rose é maravilhoso. Top 10 da vida. Filme mais lindo sobre a amizade, perdão, aceitação, solidariedade e fracasso. E Nova York, cenário certeiro pra tudo isso.

Francisco: Desculpa, dormi aqui. Vou te dizer, gosto do Allen, mas nenhum filme dele me marcou.

Cesar: Esses virtuosistas...

Francisco: Oxe, o que é isso, fera? Me explica essa pira de “virtuosista” que eu não estou entendendo. Paul Thomas Anderson é virtuosista? Em que sentido?

Cesar: Da construção do grand cinema, mise-en-scènegrandiloquente, planos sequências longos milimetricamente calculados, montagem cuidadosa, respiração certeira. Filme cruzeiro.

Francisco: Nem piro tanto em plano sequência se não tiver um conceito estético e uma função narrativa acertada. Plano sequência por plano sequência, I don’t give a shit. Tipo o plano sequência escroto de complexo do True Detective que todo mundo fala — legal e tal, mas minha sequência preferida ainda é o papo que os dois têm na igreja. É masturbação técnica, mas causa um efeito em quem vê, então ok. Mas O Mestre, por exemplo, é super minimalista na construção estética, bem básico.

Cesar: Minha implicância com a idolatração a esse cinema de Paul Thomas Anderson, Stanley Kubrick e Marcelo Pedroso (em Brasil S/A, precisamente) é como ignora o cinema pequeno, de situação cotidiana, de afeto de classe média, que nem chega a ser de gênero (porque o cinema de gênero é por essência virtuoso) nem social como os exemplos que temos de realismo. Mas o cinema que é uma crônica, que não fala nada mais que uma boa anedota, mas é tão forte e significativo quanto uma.

Broadway Danny Rose

Francisco: Mas ninguém faz isso. Sério, acho que ninguém que eu conheça, pelo menos. Agora só consigo pensar em Killer of Sheep (Charles Burnett,1979), meu atual filme preferido. Ele é precisamente tudo isso que você está falando.

Cesar: Woody Allen fez algumas vezes. Broadway Danny Rose é uma anedota em filme, lindíssima. E é o caso de outros maravilhosos dele: Rosa Púrpura do Cairo, Zelig, Misterioso Assassinato em Manhattan... E Allen é um que tem uns virtuosismos pesados.

Francisco: Exatamente. Por isso achei estranho você citá-lo, ele faz umas brincadeiras formais muito sofisticadas. Mas só recapitulando: eu concordo que muitas vezes um filme menor, focado nas pequenas coisas, podem ser magistrais. Porém, é verdade, eu vou relevar mais filmes que procuram transgredir o status quo da linguagem e fazendo isso de forma orgânica com o que o filme é. Isso me impressiona bastante, e eu vou ser sempre o primeiro a exaltar essas qualidades.

Cesar: Eu não acho que filmes como os de Paul Thomas Anderson e Brasil S/A perturbem o status quo da linguagem de maneira alguma. Pelo contrário, eles são o próprio status quo da linguagem. Onde é que depois de Kubrick, Martin Scorsese e Robert Altman serem aclamadíssimos pela crítica e cinefilia essa galera transgride o status quo da linguagem? Quem faz isso é Paul Schrader.

Francisco: Porra, não existe outro filme formalmente e esteticamente mais radical que Brasil S/A. E eu acho incrível como ele faz uso de uma forma tão inventiva e desafiadora para talhar um comentário tão direto e incisivo.

Cesar: Desafiadora para as condições de cinema que nós temos. No universo da linguagem cinematográfica, o filme é lindíssimo, mas nada desafiador.

Francisco: Paul Thomas Anderson não vale nem a pena comentar, porque ele é um filho da puta que se reinventa a cada filme, que usa cada recurso formal disponível para tecer o discurso. E desafiador no sentido de que ninguém se arriscou a fazer um longa com uma linguagem daquelas. Um filme político cujo filme mais homólogo é Fantasia, holy shit.

Cesar: A Misteriosa Morte de Pérola (Ticiana Augusto Lima e Guto Parente, 2014) e Doce Amianto (Guto Parente, 2013) são muito mais desafiadores como linguagem que Brasil S/A.

Francisco: Doce Amianto eu acho incrível. Mas não, não é. É um barroquismo que já foi bastante explorado lá fora e aqui parece novidade. Eu amo Doce Amianto, mas não. Ele é na verdade muito nostálgico com o barroco grotesco dos midnight movies — David Lynch, Alejandro Jodorowsky, etc. Mas de forma alguma ele inova tanto. Talvez dentro da estética do cinema nacional.

2001 - Uma Odisseia no Espaço

Cesar: Brasil S/A é afilhado de Kubrick, ídolo absoluto da crítica e cinefilia, tem nada de transgressão da linguagem, tem boa e inteligente apropriação dela. Transgressão da linguagem em Pedroso é Pacific. Me diz como Brasil S/A inova. A construção estética do humor e da ironia se dá tal qual Jacques Tati, e a do fim pelo moderno tal qual Kubrick. E isso que você falou do Paul Thomas Anderson pode ser verdade, mas não significa em nada transgressão da linguagem.

Francisco: O experimentalismo formal que o Paul Thomas Anderson vai realizar em todos os filmes dele pós-Magnóliatá explorando praticamente todos os limites da forma do cinema. Isso é transgressor. Ele vai negar a montagem em Sangue Negro e depois tomá-la como base em O Mestre. Porra, os filmes dele são um experimento em forma por si só.

Cesar: Mas só na medida em que todos os (bons) filmes são um experimento com a linguagem. Este ano um que me conquistou nesse sentido foi o O Congresso Futurista (Ari Folman, 2013).

Francisco: O absurdismo, a alegoria e a metáfora que o Marcelo emprega no Brasil S/A são absolutamente novos. Ainda mais na forma em que são construídos, pela música e pela imagem. Formalmente, não tem nada de Jacques Tati. Existe porém um comentário sobre a modernidade que é análogo, e só. E isso aí vai desde Metrópolis (Fritz Lang, 1927).

Cesar: A estética que permite ao moderno se mostrar ridículo é totalmente Tati. Aquela cena do automóvel, com aquela trilha, é tal como Tati apresentando suas famílias de classe média e o seu maquinário moderno. O absurdismo está nele e está também muito em Charles Chaplin. E dizer que a metáfora de Pedroso é totalmente nova depois depois da sequência inicial de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e de como ela é um caminho para o filme, eu acho complicado.

Fantasia

Francisco: Mas olha o exemplo que você está citando, é de 1968. Pra você ter que voltar tantos anos e evidenciar um dos maiores filmes de todos os tempos para compor seu argumento, então alguma coisa Brasil S/A faz muito bem.

Cesar: Um filme que tá em 90% das listas de melhores filmes. Eu não tô discutindo a qualidade do que ele faz, eu tô discutindo transgressão. Ter semelhanças estéticas com um dos filmes mais admirados do cinema não é transgressão de linguagem, não.

Francisco: Entretanto, são metáforas completamente diferentes que fazem uso de recursos diferentes de estética. A metáfora de Kubrick não é irônica, é completamente materialista. A metáfora de Pedroso é irônica e absurdista. E o fato de você estar ignorando o que há de mais transgressor no Brasil S/A — a forma — é complicado também. Assim como a estética que vai se criar a partir da escolha formal radicalíssima de Pedroso.

Cesar: Voltando a Tati. Assim como Pedroso, ele joga o absurdo na cena, no que acontece, impossibilitando a neutralidade do olhar. Nas cenas de humor, que são as que associo a Tati, as situações são pré-julgadas.

Francisco: Porra, aquela cena da igreja é uma das mais sensíveis e ao mesmo tempo trágicas. Num filme que vai sempre jogar para o ridículo tem uma cena daquelas, trágica e calorosa ao mesmo tempo. A escolha da música se torna absolutamente essencial e os planos sequenciais também. Mas sim, ele concebeu e construiu o ridículo. É justamente essa a intenção.

Cesar: Vou arriscar falar uma merda agora, mas lá vai: quando a cena é construída sobre um ridículo que foi colocado ali narrativamente e em caracterização, isso em Pedroso, Tati, Chaplin ou Monty Phyton, o olhar não pode acrescentar nada sobre esse ridículo porque ele já é autossuficiente. Sim, eu acho que Pedroso tem maneiras de representação muito distintas em Brasil S/A.

Francisco: Não acho que seja “merda”, mas acho que é uma consideração ambígua, porque você está colocando isso como um defeito, e eu vejo como uma escolha. Não caberia num filme como Brasil S/A uma liberdade de olhar, uma liberdade de interpretação com relação à imagem. Como rola muito (e eu acho até meio problemático) em Faça a Coisa Certa, entende?

Cesar: Eu não vejo como defeito! Eu não vejo como transgressão, that’s the point. Eu vejo como Tati, que você diz que não tem nada a ver além da crítica ao moderno. E eu escolho Tati aos outros citados porque o diretor tem um silêncio que é muito essencial ao seu ridículo, como em Pedroso.

Francisco: Formalmente eu não vejo nada parecido em Tati e Pedroso. Esteticamente sim, porém eu não vejo uma semelhança estética como uma não-transgressão. A transgressão, como a vejo, vai se dar pela forma e pela estética. Esteticamente Brasil S/A não é tão transgressor e/ou novo, formalmente isso é absolutamente inegável. É só pensar que o filme com a forma mais parecida é fuckin’ Fantasia. Isso é completamente novo.

Meu Tio

Cesar: Você me convence no ponto de que há experimentalismo formal em Brasil S/A. Mas todo filme é um experimento de cinema. Nenhum deles, mesmo os melhores, é completo, até porque o cinema é uma linguagem diversa demais pra isso. O que me incomoda é a aclamação do virtuosismo estético que faz sombra sobre filmes como Broadway Danny Rose, menosprezado, ainda que ele seja interessantíssimo como experimento, como comédia que tenta compreender a alma humana.

Francisco: Não sei. Acho que existe sim a exaltação por um cinema menor e formalmente menos gritante. Ora, todo mundo ama Yasujirô Ozu, não? Quem conhece Rainer Werner Fassbinder ama também.

Cesar: São diretores de drama, acho que há uma diferença. A única comédia sobre a natureza humana que é realmente aclamada acho que é A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939).

Francisco: É, tá aí um ponto em que eu não tinha pensado. Já viu Louie? Acho fantástico e que deveria ser mais discutido. Gosto mais do que tudo do Allen.

Cesar: Já, e é exatamente isso! Louis C.K. é o Woody Allen contemporâneo e, sendo assim, vai muito além dele. Amei esse papo. Posso editar e publicar?

Francisco: Pode, mas tenta fazer a gente parecer mais witty.