Gilmore Girls, em busca da comunidade ideal

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por Cesar Castanha “A retirada para uma religião recém-descoberta ou para uma tradição comum reinventada não era uma resposta para o desafio da modernidade, mas uma fuga dele”, Svetlana Boym em O Futuro da Nostalgia “Então você pode entender? Quero uma filha enquanto ainda sou jovem, quero segurar sua mão e mostrá-la alguma beleza antes que o estrago seja feito”, The Suburbs, Arcade Fire Há algumas semanas, uma geração de jovens adultos celebrou o breve retorno de Gilmore Girls, a série coming of age definitiva dos anos 2000, para uma minissérie de quatro episódios da Netflix. A nostalgia desse retorno não é nenhuma novidade. A Hollywood contemporânea tem focado bastante em repensar produtos de afeto e colocá-los de volta no mercado. E a Netflix está indo na onda. Antes de Gilmore Girls, Full House  — mais conhecida no Brasil como Três é Demais — ganhou uma série completa como continuação, a Fuller House. Em Gilmore Girls, no entanto, a nostalgia não está só no produto. Ora, esta é uma série sobre uma mãe solteira e sua relação com os pais e a filha, mas é também sobre a sua relação com a encantada cidade de Stars Hollow, uma pequena comunidade no estado de Connecticut que guarda suas tradições apaixonadamente, entre elas uma caçada anual por ovos de Páscoa, que movimenta toda a cidade, e uma vigília na neve em uma reencenação da Revolução Americana. Stars Hollow é a América ideal, o subúrbio perfeito de Agora Seremos Felizes (dir. Vincente Minnelli, 1944) e das tirinhas de Charles M. Schulz. Uma comunidade que se organiza sazonalmente, que celebra tradições específicas para cada estação do ano e que desenvolve seus afetos a partir da maneira muito específica como se organiza, uma maneira que faz de um visitante externo o mais distante forasteiro, incapaz de experimentar a autenticidade local. Desenvolvida por Amy Sherman-Palladino, a série, no entanto, é protagonizada por uma dessas forasteiras. Lorelai Gilmore, nossa heroína, é filha de uma rigorosa família da elite de Hartford, engravida do namorado aos 16 anos e, recusando-se a casar com ele, foge de casa para criar a filha sozinha, trabalhando como camareira em uma pousada de Stars Hollow. Lorelai e sua filha, Rory (apelido para também Lorelai, já que a menina foi nomeada a partir da mãe no que as personagens se referem como um “surto feminista”), estabelecem-se na cidade, afastados dos avós da garota, a quem agora só encontram em algumas datas comemorativas. Quando Rory faz 16 anos (e este é o ponto em que a história começa), ela é aprovada na seleção de uma conceituada escola particular. Mas, para que a filha possa estudar em uma boa escola e ir para a faculdade de seus sonhos (Harvard), a mãe precisa abrir mão da independência conquistada e pedir dinheiro emprestado para seus pais, aceitando comparecer com a filha a um jantar semanal pelo tempo em que a dívida não fosse paga. Nas sete temporadas que dão seguimento a esse acordo, a distinção entre Stars Hollow e a comunidade de Hartford — e nessa comunidade estão inclusas a casa de Emily e Richard, pais de Lorelai, a escola de Rory e a alta sociedade local — é feita muito claramente. A elite de Hartford, por exemplo, também preza pelas suas tradições (bailes de debutantes, eventos de arrecadação para caridade e afins), cada uma delas rejeitada por Lorelai como sintomas de uma afetação elitista. Enquanto isso, ela e sua filha se envolvem deslumbradas (ainda que ironicamente) nas manias da cidade onde fizeram seu lar. Elas participam das reuniões, levantam barracas nas diferentes festividades locais e celebram o estranho orgulho de Stars Hollow, o pedaço de autenticidade perdido dos EUA. Escolhi a música The Suburbs para abrir o texto justamente por funcionar como lamento por uma experiência americana perdida. Mais do que isso, na verdade, a letra da música reconhece a futilidade desse lamento, a falta de historicidade do sentimento nostálgico em seu apego a comunidades imaginadas, mas ainda assim não consegue se livrar do sofrimento e da sensação de perda provocados por essa nostalgia. No trecho escolhido, o eu lírico deseja ter uma filha ainda jovem para poder mostrá-la as belezas do mundo antes que “o estrago seja feito”. Sendo essa uma de minhas músicas favoritas, já perguntei-me muitas vezes a que “estrago” ela se refere. Seria um novo desaparecimento do subúrbio perfeito, um ideal cada vez mais distante? Ou seria o próprio envelhecimento desse pai jovem, que perderia o encanto e sucumbiria ao sofrimento nostálgico? Em A Dor dos Filhos, um artigo da genial Eliane Brum, a autora escreve “Tive minha filha aos 15 anos, o que não me deu tempo de esquecer das dores da infância ou da perplexidade da infância [...], e aos 15 anos ainda não tinha feito o luto de nenhuma das duas”. O “estrago” poderia então ser também a perda da possibilidade de empatia de um pai para com seu filho. Ao sair de casa aos 16 anos com a filha recém-nascida, Lorelai recusava, para a garota, a repetição da sua própria experiência de perda e sofrimento nostálgico. gilmore-girls É preciso entender que a nostalgia não é um sentimento exclusivo dos mais velhos, é uma sensibilidade especialmente presente na contemporaneidade e que não resulta apenas em relações de afeto por um falso lugar do passado, mas também em sofrimento pela perda do que nunca se teve. É uma sensibilidade também bastante construtiva (ou destrutiva), se pensarmos por exemplo em como essa perda, esse afeto e esse sofrimento são evocados nos discursos políticos que prometem a recuperação desse lugar utópico. E, se a Hollywood de hoje tira seu lucro com releituras nostálgicas, é preciso levar em consideração que esse lugar utópico é uma promessa histórica do cinema americano, desde os primeiros talkies, passando pelos musicais até o filme adolescente. Em Agora Seremos Felizes, a família Smith gozavam de uma intensa experiência coletiva na cidade, que inclui cirandas esporádicas na casa dos vizinhos e cantoria em coro no bonde; nos filmes de John Hughes, ser adolescente significa passar por determinados rituais do subúrbio e do colegial americano; nas comédias de Preston Sturges, George Cukor e Howard Hawks, a afetação da elite de Connecticut era enfrentada pela excêntrica rebeldia dos filhos e herdeiros locais. Protagonizado por uma consumidora voraz dessas promessas de comunidades perfeitas e personalidades autênticas, o roteiro de Gilmore Girls ficou famoso pelos diálogos rápidos e constantes referências ao cinema e à cultura americana. A série é, de fato, um talkie moderno, recuperando a esperteza e o ritmo muito específico desse gênero. E, nessa nova Connecticut, Lorelai é como uma boa sátira de Katherine Hepburn. Lauren Graham, a atriz que lhe dá corpo, é merecedora da comparação. Como sua personagem, parece um talento tirado da Hollywood clássica. E o mesmo pode ser dito sobre Rory (Alexis Bledel), Emily (Kelly Bishop) e Richard (Edward Herrmann): personagens e atores que ajudam Sherman-Palladino a recuperar um cinema perdido. Mas esse gesto de recuperação é conduzido também, e principalmente, por Lorelai. A personagem deixa a casa dos pais em uma afirmação de independência feminina (e seria muito injusto perder isso de vista), mas também pela possibilidade de existir enquanto personalidade autêntica, de encontrar a comunidade utópica prometida e de, nesse lugar ideal, criar sua filha. A minissérie da Netflix dá continuidade a um problema já colocado pelas últimas temporadas da série original: qual é o caminho que leva para fora de Stars Hollow? É possível que alguém escolha, deliberadamente, deixar a comunidade perfeita? Por mais absurdo que possa parecer para Lorelai, esta é a escolha que faz sua filha, aproximando-se dos avós e de um mundo cada vez mais distante de Stars Hollow, da mãe e até mesmo de Connecticut. A série original tem fim no exato momento que marca a retirada definitiva de Rory da cidade, que celebra a partida dela como um rito de passagem. No último episódio, Richard parabeniza Lorelai pela conquista da comunidade, compreendendo o pertencimento da filha àquele lugar. Lorelai, por sua vez, sela esse pertencimento ao retomar o relacionamento com Luke, depois de um estranho e breve casamento com Christopher, o pai de sua filha — estranho principalmente pelo não pertencimento de Christopher a Stars Hollow, algo que a série enfatiza algumas vezes uma vez que o personagem se muda para a casa da esposa. E a minissérie, alerto desde já para os spoilers que virão adiante, começa com o retorno de Rory para Stars Hollow. “Parece que faz muito tempo”, diz a personagem, acenando para os anos em que a série esteve fora do ar. Essa sugestão autoirônica de que a última vez em que Rory esteve na cidade foi a última vez em que a vimos nela, joga uma luz para todo o conflito da personagem durante os quatro episódios, o seu fracasso no mundo exterior e a contemplação da necessidade de se restabelecer em Stars Hollow. Rory, que acaba de perder seu apartamento, espalha seus pertences entre a casa da mãe, dos avós, de Lane (sua melhor amiga de infância) e de Paris (sua melhor amiga do colegial/faculdade), resistindo a esse retorno enquanto toda a cidade o reconhece como um fato. Quando Rory cede a Stars Hollow, ela conduz ainda uma frustrada tentativa de adaptar as regras da cidade, repensar suas tradições e assim aproximá-la novamente de si, o que é enfaticamente rejeitado pelos outros moradores. No auge de sua crise pessoal, quando todos os caminhos para fora de Stars Hollow e para mudar a cidade parecem fechados, um ex-namorado sugere que ela redescubra a própria história. E o verdadeiro sentido dessa jornada de redescobrimento só será revelado na última cena, planejada por Sherman-Palladino (segundo ela mesma) desde a série original, com a sentença “Mãe, eu estou grávida”. O encerramento da narrativa das duas nesse ponto é muito exato. Rory deve tomar, aos 32 anos, a decisão que a mãe fez aos 16. Não quero dizer com isso que ela repetiria os passos da mãe, mas há algo que ela haveria de decidir (na minha leitura, a decisão já estava feita) sobre o seu lugar e o lugar de seu filho. O que entendo, nesse ponto, como a nova saída de Rory de Stars Hollow ganha outra dimensão com os quatro episódios finais. Desta vez, a personagem deixa a cidade entendendo-a como imaginário e fantasia, ela busca a própria história para desmistificar seus afetos, para ver com clareza os caminhos que a levaram até aquele momento. Rory, diferente da mãe, toma sua decisão como alguém que pertenceu à comunidade ideal e, indiferente ao sofrimento nostálgico, está livre para seguir adiante.