Hélio Oiticica

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A geração inovações artísticas dos anos 1960 inspira certo respeito generalizado. No Brasil, ela está representada no Cinema Novo, na Tropicália e em outros movimentos que despontam com menos força na memória coletiva. Como geralmente acontece, as inovações marginais da arte de uma época são potencialmente incorporadas pela cultura hegemônica (respeitável, talvez, pois cabe aqui um pouco de acidez). Assim é que, por exemplo, Gilberto Gil se torna ministro da Cultura.

Não acho que esse ciclo seja de forma alguma algo ruim. Pelo contrário, é bom que a cultura se expanda, indefinidamente colocando novas referências e descobrindo novas margens. Mas é ainda curiosa, considero, essa transição do radicalismo para o mainstream. Lógico, não é sempre que acontece. Alguns artistas permanecem por décadas nas trincheiras ou lutando pela própria marginalidade, quando esta não se consolidou nos meios contemporâneos de respeitabilidade artística, ou pela de outros.

Hélio Oiticica (Cesar Oiticica Filho, 2012) é um filme que milita pelo seu personagem e, na exposição de algumas das várias imagens utilizadas pelo filme, também pelo fervor de ideias dos anos 1960 que se reconhecem como inovadoras. Na verdade, o filme monta a militância de Oiticica através de um acervo de imagens e entrevistas.

A verborragia — e gostaria de dar à palavra um sentido positivo — do artista plástico e performático foi, para mim, em alguns momentos instigante e, em outros, angustiante. A criação artística de radical motivação ideológica costuma me despertar curiosidade, principalmente quando as contradições começam a despertar no discurso — o que a montagem do filme, ainda bem, sempre permite que aconteça. Até que o discurso se prolonga, intensificando seu caráter autoconsciente e expondo ainda mais os problemas de coerência do personagem — a verborragia, por exemplo, várias vezes contradiz sua fervorosa proclamação antiacademicista.

Lógico que o filme nunca exige, nem deveria exigir, coerência de Hélio Oiticica. A bricolagem aqui é política, mas ainda neutra. Oiticica não é seu herói, mas seu personagem. A aula de arte que promove, não tendo o tom didático de um documentário televisivo, termina por se entrelaçar ao estudo de personagem, o que é ótimo.

Oiticica, como o filme permite que ele nos mostre, foi o idealizador dos penetráveis e parangolés — estruturas artísticas que, segundo ele, só estão completas na interação com o sujeito. Estes, como nos mostra cruelmente o ciclo de historiografia da arte, são deturpados hoje por curadorias diversas, expostos isolados como peças únicas de museu.

Daí vem a angústia: pela preservação material da memória, aliena-se o efêmero e mutável. Mas ainda assim é evidente que a memória precisa ser preservada. E é no desespero por segurar algo que não deveria ser perdido que se isolam nos museus “de arte contemporânea” parangolés e penetráveis. Hélio Oiticica oferece uma nova maneira de preservação da memória e assim também dialoga com a crise de preservação do próprio cinema, de cinematecas que lutam para passar seu acervo de nova tecnologia para nova tecnologia, estas que são tão frágeis quanto encantadoras. Enquanto isso, a grande possibilidade de preservação coletiva é basicamente ignorada pelo caráter ilegal de suas ferramentas. O museu surgiu com as revoluções iluministas para dar ao público o domínio da memória, tirando-a dos palacetes privados e demais fortalezas inacessíveis. A internet hoje possibilita o compartilhamento inovador da memória; para alcançá-lo, no entanto, precisamos descer do pedestal de eruditismo burocrático.

Contradições no desenvolvimento da cultura são inevitáveis e muitas vezes até motivadoras do ponto de vista artístico. Mas é preciso reconhecer a sua existência, observando demandas históricas na manifestação contemporânea. Ao mesmo tempo, conservadorismo e progresso são palavras que, isoladas, dizem muito pouco de si mesmas, não estão contidas nelas soluções evidentes ou um caminho determinado. Resta-nos o debate, mesmo que contraditório e verborrágico.