A Letra Escarlate de Cada Geração, por Lucas Procópio

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it follows film still Mesmo antes de Freddy Krueger lançar suas garras por entre as pernas da virginal Nancy na provável mais emblemática cena de A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), o sexo como responsabilidade já pesava sobre os ombros das gerações Y e Z. Se por um lado nenhuma outra geração desfrutou de tamanha libertação sexual, seja através da aceitação de diversas práticas além da matrimonial heterossexual, seja pela industrialização da pornografia, o temor em torno das DSTs nunca foi tão presente e característico demograficamente. Tratam-se de jovens adultos e adolescentes que cresceram na paradoxal combinação do acesso indiscriminado a material pornográfico e aulas de educação sexual que pregam o sexo asséptico de forma amedrontadora; as baladas onde o objetivo é contabilizar o máximo de bocas beijadas e a aterradora chance de contaminação de diversas doenças; É a partir desta contradição de prazeres e horrores que Corrente do Mal (It Follows, 2014) concebe a alegoria na qual se sustenta: ao invés dos demônios e entidades malignas que dominam o cinema de horror atual, a responsável por tirar o sono dos personagens (e do espectador) é uma maldição sexualmente transmissível que assume diferentes formas humanas para exterminar com violência seus “infectados”. A única forma de escapar com vida é infectando outra pessoa, dando início a tal “corrente” do título nacional. Ou seja, aquilo que mata também é o que liberta. Desde seu lançamento no Festival de Cannes de 2014, muitos tem associado o mal que acomete os personagens com a epidemia do HIV no começo dos anos 1980 e a displicência das gerações posteriores, e, embora este período sombrio ecoe ao longo do filme, a alegoria aqui é ainda mais abrangente. A lógica do diretor David Robert Mitchell compreende o sexo como agente configurador de nossos papéis sociais, papéis que, uma vez desconfigurados, desafiam nosso modelo de apresentação, algo de impossível assimilação por este esquema social no qual estamos inseridos, e portanto uma ameaça em potencial. Aqui, a ameaça se manifesta como a bela Jay (Maika Monroe), que se entrega a um rapaz logo no segundo encontro, ao contrário de Nancy, a virgem que sobreviveu aos ataques de Freddy 30 anos atrás, não sem antes assistir de camarote seu namorado ser brutalmente assassinado – cena que Mitchell repete em forma de homenagem, porém alterando os contextos. Jay contraria seu papel social, uma cartilha com inúmeros exemplares de final girls que só sobreviveram porque se mantiveram castas ante as lentes da câmera.  E tamanha heresia será cobrada. Em cada nova forma assumida pela maldição está refletida a pressão imposta sobre Jay enquanto mulher desafiadora de seu arquétipo pré-definido. Além de ser vítima dos paradoxos sexuais de uma geração ainda em formação, ela sofre das mazelas de ser mulher, estas sim, intactas pelo tempo.  A incomum heroína já não se contenta com a representação unidimensional de suas predecessoras, e desde o início negocia com a câmera este olhar mais aprofundado sobre sua figura. Ela é revelada pela primeira vez de maiô, boiando em uma piscina, sozinha, ignorando o chamado de sua irmã mais nova para se juntar ao restante dos amigos. Apenas depois de ditar o seu tempo, ela decide nos levar para seu quarto, onde Mitchell a contempla vagarosamente enquanto ela se veste e se maquia como se aproveitasse os últimos instantes de autonomia da personagem sobre suas próprias escolhas. Já em seu primeiro contato íntimo com um homem, Jay perde seu poder de negociação com as lentes - o que o diretor enfatiza apoiando a câmera na cadeira em que sua protagonista é amarrada e arrastada. E como um presságio do que os aguarda, os amigos de Jay a esperam jogando “Old Maid”, um jogo de cartas ilustradas por personagens caricatos, cujo objetivo é passar os arquétipos adiante para os demais jogadores, dinâmica semelhante a da maldição que, a partir deste momento, servirá como a única ferramenta de barganha em uma espiral de humilhações a qual Jay deverá se submeter. Curiosamente, as variadas representações humanas da maldição aparecem sujas, nuas ou vestidas de forma inapropriada, uma espécie de letra escarlate fantasmagórica, que Mitchell reitera com repetidas tomadas dos dedos de sua protagonista, onde ela possui um “X” tatuado. Esta atemporalidade é traduzida através da concepção de um universo paralelo, onde os jovens não possuem smartphones ou notebook, onde carros e eletrodomésticos aparentam ter mais de 20 anos de uso. Esta sensação de suspensão também recebe reforços da sensacional trilha sonora composta por Rich Vreeland (sob o pseudônimo de Disasterpiece), que remete às melhores composições de John Carpenter, cuja influência não para por aí – Jay é apelido de Jamie, por acaso também nome da intérprete da maior scream queen do cinema, Laurie Strode. E rompendo com mais uma convenção, Mitchell não oferece soluções pragmáticas para o dilema de seus personagens, tampouco trai a natureza deles. São jovens comuns, que lidam como podem com seus desafios, o que justifica a tão criticada sequência da piscina, um plano juvenil com o qual o diretor ilustra o desprezo de uma geração por sua predecessora. Prole de uma linhagem que se orgulha pelos avanços tecnológicos conquistados, eles arremessam na água aparelhos já obsoletos, na vacilante tentativa de se livrarem da sombra que os persegue. Contudo, por mais que o embate resulte em hemorragia, sempre haverá novas máscaras, mais modernas e aparentemente inofensivas, com as quais “o obsoleto” se apresentará. O que resta fazer é sobreviver, dia após dia, ao céu e ao inferno de ser quem se é.