Livrai-nos do Mal

Escrito en BLOGS el

Eric Bana em Livrai-nos do Mal

No ano passado, A Invocação do Mal (James Wan) colheu todos os louros como o grande filme de terror blockbuster da década e se tornou quase um herói do gênero. Guardado o respeito a uma produção cuidadosa, atuações respeitáveis e uma direção de classe, a verdade é que o filme não faz muito além de reproduzir clichês que têm assombrado — com o perdão da irônia — o subgênero do filme de exorcismo há bastante tempo. Como tantos outros, também escondido por trás de uma cretina — porque perigosa — cartela de abertura: “baseado em fatos reais”.

Livrai-nos do Mal (Scott Derrickson, 2014) segue a correnteza. O filme é baseado nos diários do policial demonólogo católico Ralph Searchie (um lamentável Eric Bana). Como coloca Jordan Hoffman, do The Guardian, você pode se questionar por que nunca ouviu o supostamente verídico caso de três assassinos endemoniados que aterrorizaram Nova York até serem salvos (porque, afinal, se estão possuídos são também vítimas) por um policial e um padre.

O padre em questão é Mendoza (Édgar Ramírez, canastrão). Ele fuma, bebe e malha. Junte isso às referências constantes a músicas do The Doors e alguém pensaria que se trata de uma nova estratégia de conversão — ou manutenção, mais provável — da Jornada Mundial da Juventude. Na insistência do discurso religioso, o filme se mostra ridículo. Besteiras sobre a questão do aborto podem até ser ignoradas diante da posição revoltante que o filme impõe quando discute “a natureza do mal”. Falo impõe porque, lembrem-se, ele nos avisa tratar-se de um caso real.

O estereótipo do italiano criado católico cético é divertido até ficar claro que a salvação de sua família depende da renovação dele com a fé, então é preocupante. O filme está mais sujeito a críticas como esta porque tem roteiro e direção tristes, mas o muito mais agradável A Invocação do Mal passa pelo mesmo caminho de lições morais. Se também aceitarmos a verdade alegada pelo filme de Wan, temos justificados alguns assassinatos da inquisição.

Uma vez consolidado o papel da Igreja, o filme se preocupa em engrandecer também a instituição policial. Neste ano, uma tentativa fracassada do Departamento de Polícia de Nova York — NYPD, em que este lançou uma estratégia de marketing pelo Twitter através da hashtag #MyNYPD (meu NYPD), resultou em uma onda de fotos que demonstram abuso de autoridade sendo praticado pela mesma polícia. Este evento e o filme só fazem parte do mesmo 2014 por acaso, pois o engrandecimento da instituição não é de maneira alguma exclusividade de Livrai-nos do Mal — Christopher Nolan, afinal, foi campeão de bilheteria com uma trilogia que faz mais ou menos o mesmo. Mas demonstra bem a ignorância e a-historicidade que imperam em Hollywood.

Esses filmes não são inofensivos porque rejeitam ser reconhecidos como ficção. As próprias escolhas estéticas de Livrai-nos do Mal evidenciam a fuga do filme do caráter fantástico que — por motivos óbvios (?) — deveria ser inerente ao gênero. A fotografia e direção de arte se aproximam mais de um thriller ao modo de Seven (David Fincher, 1996)  que de qualquer horror produzido antes de 2000.


Eu não posso dizer que sei de onde vem essa necessidade de afirmar besteiras como essas como verdadeiras, parece-me mais uma mania do cinismo pós-moderno. Comparado ao que já foi discutido em textos anteriores, este caso é um tanto mais tenebroso. Para dar validade à fé, Derrickson e todo um subgênero do terror a coloca como um fato. Talvez não tão ironicamente, o diretor foi convidado pela Marvel para dirigir Dr. Estranho. É triste, pois o personagem merecia alguém que reconheça a fantasia de seu misticismo sem tentar nos convencer do contrário.

Chris Coy em Livrai-nos do Mal