Nós Somos Nossas Escolhas e Diz que Fui por Aí - MOV Dia 1

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Tryouts (Susana Casares, EUA)

Eu geralmente me dou muito bem em sacar a linha de raciocínio que seguiu uma curadoria para unir determinados filme em uma sessão. Não sendo o caso deste primeiro dia de MOV – I Festival Internacional de Cinema Universitário de Pernambuco, um festival que começa agora já com uma boa força imagética e sólida seleção de filmes, não daria muito certo fechar os textos por sessão — embora louvável seja, e torço para que tenha sido intencional, quem quer que tenha tido a ideia de usar uma citação de Harry Potter e a Câmara Secreta para nomear um programa.

De forma geral, é justo dizer que os curtas nacionais desta noite são bem mais interessantes, corajosos e criativos do que os internacionais, estes cheios de selos do Festival de Cannes  ou da Academia de Artes e Ciências Visuais, que conhecemos por entregar o Oscar. Dos cinco filmes exibidos no Nós Somos Nossas Escolhas, só dois guardei com afeto para a sessão seguinte e para o caminho de volta para a casa (embora O Completo Estranho, obra-prima de Leonardo Mouramateus, não tenha deixado muito espaço para outros neste).


Os dois que falo são o muito simples e eloquente The Jacket (Patrick Vollrath, Áustria) e Into the Vinnards(Nicole Vögele, Alemanha), belíssimo registro em vídeo de devaneios viajantes. O primeiro é um encontro de casal, daqueles iniciais marcados por promessas de afeto e beijos delicados, que é interrompido por alguns bullys. De uma situação muito mínima de conflito, o filme extrai toda uma manifestação de insegurança masculina, a necessidade social da imposição e o sentimento pessoal paralisante de diminuição e humilhação. Não é o único filme do ano a trabalhar a crise que parte de expectativas não correspondidas de instintos de determinados gêneros. The Jacket está muito bem acompanhado por Força Maior (Ruben Ostlund, Suécia) e Garota Exemplar (David Fincher, EUA), mas tem ainda algo de particular em relação a esses filmes no que a expectativa e a decepção estão no próprio sujeito do qual se espera.

Se (Ian Capillé, RJ)

Pensei por um momento que poderia comparar Into the Innards com os maravilhosos curtas-metragens de Alain Resnais, como fiz mais cedo este ano com os portugueses A Caça-revoluções(dir. Margarida Rêgo) e Redenção (dir. Miguel Gomes), mas acontece que o filme é muito mais engajado e participativo naquilo que apresenta imageticamente. É crucial para Into the Vinnards que o eu-lírico esteja lá. Observando a casa, sonhando com ela, conversando com moradores locais. Assim, é mais uma aliança entre o ideal estético do cinema-verdade com o construtivismo de Vertov. Mas, embora seja gostoso situá-lo, não há muito mais pra que essa localização, principalmente se considerarmos que o documentário contemporâneo tem se especializado em ser completamente novo a partir do velho. Se Into the Innards é realmente um documentário também é um debate que pertence ao passado. O que importa é que o eu-lírico viveu aquela viagem, subvertendo a ciência antropológica por se aproximar em excesso e se permitir confundir com o objeto observado.

Outros filmes do Nós Somos Nossas Escolhas, como Tryouts (Susana Casares, EUA) e Weathering Love (Janis Klimanovs, Holanda) são ótimos, mas vão pouco além do processo de desenvolver um filme e uma narrativa da maneira que é reconhecida como correta. Foi feliz ver que os quatro curtas brasileiros que seguiram mostraram-se mais dispostos a experimentar com as maneiras da linguagem, alguns naturalmente a dominando com mais êxito que outros.

O primeiro do Diz que Fui por Aí, Fragmentos de uma Cronologia Inerte (Lucas Simões, PE) é um filme de ideia, o que tenho a impressão (talvez pela minha proximidade com o cinema daqui) de ter se tornado um subgênero da cidade do Recife. Este seriam os curtas-metragens desenvolvidos a partir de uma proposta estética muito simples, como alguns dos excelentes filmes do coletivo Surto Deslumbramento ou outros motivados pela crescente disputa urbana na cidade, como Vertical (dir. Júlio Pereira). Fragmentos não consegue ir além da sua ideia estética, mas pelo menos esta é ótima e perfeitamente executada. O filme tem momentos de louvável virtuosismo, quando um retrovisor parece prender um universo cercado por céu e mar. Em alguns planos, o espelho do retrovisor parecia ser a porta de entrada para uma cidade imóvel.

O Completo Estranho (Leonardo Mouramateus, CE)

Ano passado, eu muito celebrei Nossos Traços (Rafael Spínola, RJ) pelo depoimento pessoal sobre um registro de audiovisual próximo. Se (Ian Capillé, RJ) é um passo além nessa mesma ideia. Normalmente eu teria calafrios com a frequente exposição de um diretor diante da lente de um documentário, principalmente quando este trabalha questões muito pessoais. Mas o eu-lírico de Se, diferente da Petra no terrível Elena (Petra Costa, 2012), não se registra do pressuposto que ele tem algo de especial que mereça ser registrado, ele se filma por afeto pela memória, até pelo próprio registro. Em determinado momento, o filme sugere que ele o faz também por necessidade, como forma de existir. Se, também diferente de Elena, é esteticamente livre. Gosto do processo inicial de câmera para câmera, de meio de registro para meio de registro, por negar certo elitismo nostálgico da idolatração pelo Super 8, passar pela breve experiência generalizada da classe média com a filmagem VHS e fixar-se na ferramenta que lhe é contemporânea. Há afeto por cada um desses processos, mas este não impede o personagem de seguir adiante.

A noite termina com a história de amor O Completo Estranho (Leonardo Mouramateus, CE). É meu terceiro contato com o filme, segundo no cinema (e adoro como a telona o engrandece), e a cada vez o impacto é maior. O curioso é que sempre se destacavam para mim algumas coisas da experiência de viver o filme, o primeiro plano, a festa, a coreografia, o diálogo no escuro... Agora, pela primeira vez realmente pensando sobre filme no seu aspecto mais narrativo, arrisco dizer que é um profundo olhar ao amor contemporâneo. Todo o amor que não foi, mas poderia ter sido e que, no fim das contas, é pela mera possibilidade de ser. Amor fugaz e verdadeiro de aplicativos de celular, que pode durar 5 minutos de conversa ou infinitamente, que pode ou não ser correspondido, que é fácil, mas não é frágil. É a primeira vez que vi ou percebi, não sei bem, o título internacional Dois na Sombra, gostei muito dele. Acho que diz muito sobre esses personagens que, contrariando a expressão, transam na luz e amam no escuro. O Completo Estranho é pra mim como uma versão muito contemporânea (no que diz e em como diz) de Desencanto(David Lean, 1945). Eu gosto como esse amor passageiro próximo se contrasta com o amor distante do também belíssimo Tejo Mar (Bernard Lessa, RJ), exibido mais cedo na mesma sessão. Neste caso, é o amor imigrante muito carioca, de praia, cerveja, samba e corpos perfeitos. Em O Completo Estranho é um amor prestes a emigrar, cheio de futuro e pronto para abandonar o passado.

Fui muito positivamente surpreendido nestas primeiras sessões do MOV, continuarei escrevendo sobre o Festival aqui. Ele acontecerá todas as noites até a próxima sexta-feira no Cinema São Luiz, mesas de debate também fazem parte da programação, que você pode acompanhar pelo site do Festival.

Tejo Mar (Bernard Lessa, RJ)