Nosso lugar em "Martírio"

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A força de um filme como Martírio (dir. Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita, 2016) — exibido no XI Janela Internacional de Cinema do Recife — é sugerida pelo impacto de suas sessões, mas, como em todo filme, não pode ser tão de imediato calculada. Se me for permitido um palpite, no entanto, diria que Martírio sobreviverá ao contexto específico em que foi lançado e que encontrará nova voz em novos tempos, como conseguem fazer grandes filmes, e alguns dos maiores filmes militantes — como Cabra Marcado para Morrer (dir. Eduardo Coutinho, 1984). Confio nisso, principalmente, porque o filme já apresenta, hoje, uma nova voz, sobreposta às imagens que traz e à narração que as conduz. Ele já carrega em si uma resposta ao Brasil pós-Golpe, que a produção do filme, em sua maior parte, antecede. Assim, com um documentário que estabelece a história da luta indígena pelo direito à terra até a situação do governo de Dilma Rousseff, Carelli e seus codiretores conseguem trazer na obra todo um conjunto de sentidos cujo impacto não pode ser uniforme ou generalizado. Acredito por isso que só possa falar do filme neste momento pós-golpe e de como ele se apresentou, a mim, numa sessão em que a maior parte dos espectadores se reconhecem como parte de uma esquerda urbana de classe média. É só a partir desse ponto que posso falar do filme, só reconhecendo exatamente onde e quando estou posso me deixar afetar por suas imagens. Só entendendo onde estamos e como chegamos aqui podemos nos abrir à força do intragável que o filme carrega. Os mais críticos ao filme chamam a atenção para o fato de que o diretor é branco e para o risco antropológico de tê-lo dirigindo um filme sobre a questão indígena. Não é uma crítica a ser ignorada. A questão do lugar de fala revela a discrepância inaceitável entre os grupos que disputam o poder de discurso. Mas o que Martírio parece fazer é justamente revelar o lugar de seus espectadores diante da História que apresentam. E mesmo isso não se resume a um acordo geral pela “culpa branca”, como poderia parecer. O filme nos conduz a um reconhecimento mais específico, individual. Por isso, entendo, não opera apenas a partir da nossa consciência ética, mas implica também respostas de nosso corpo. O didatismo da narração em off do filme apenas nos expõe aquilo que precisamos saber para sermos levados, por suas imagens, a nossa específica experiência estética. Essa é a fronteira que a narração do filme não ultrapassa nem pode ultrapassar. Ela não pode nos dizer quem somos, assim como não diz quem os indígenas são (dessa forma recusando a antropologia). Isso seria recorrer ao mesmo método que diversas instituições do Estado adotaram e ainda adotam em relação ao Outro na História. E o filme é mais do que isso. É uma defesa do direito do outro de reconhecer a si mesmo ao atribuir sentido à maneira como seus corpos ocupam determinados espaços. É aí que podemos entender alguma coisa do significado que o “tekohá” (a terra onde enterram seus mortos) tem para a construção da identidade Guarani Kaiowá. E é por isso também que a força desse significado está para nós, brancos, completamente perdida. Então, como a construção de identidade e o modo de se relacionar ao mundo dos guarani-kaiowá estão fora do alcance da arrogância de instituições classficatórias ou mesmo da antropologia, também a sua língua, o modo que expressam essa relação com o mundo, estaria fora do alcance do discurso branco. E isso Carelli singelamente reconhece em uma das primeiras cenas, quando se recusa a traduzir um diálogo entre guarani-kaiowás. Alertando-nos, desse modo, para a própria limitação implicada por seu lugar de fala, para a sua incompreensão da força real das imagens que apresentará, assim como para a nossa própria.