O Anjo da História, por Emily Garside

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A peça "Angels in America" foi um marco do teatro contemporâneo e uma resposta cultural única ao boom da Aids nos anos 1980. A peça recebeu uma nova montagem este ano no National Theatre, em Londres. Graças a gentileza de um amigo, também fã da peça, Madson Melo, recebi de presente uma revista lançada pela montagem. Nessa revista há quatro artigos discutindo a peça, seu contexto social e cultural, a questão da Aids hoje, identidade nacional e um artigo histórico sobre a figura de Roy Cohn. Em celebração ao Mês do Orgulho, traduzo para publicar neste espaço os artigos da revista   Um épico apresentando mais de trinta personagens, de agentes de viagem e advogados a emanações divinas e mórmons, Angels in America é um drama único. Ele cria um mundo em que doença e sexualidade são compartilhadas sem remorso e discussões políticas ficam ao lado de visitas angelicais espetaculares. Ao assistir-lhe, somos forçados a confrontar questões sobre política, história, identidade pessoal e nacional e, em última instância, sobre nossas responsabilidades em moldar o mundo em que vivemos. As origens da peça datam de São Francisco no início dos anos 1980, quando foi oferecida uma comissão da Eureka Theatre Company a Tony Kushner. Dando seguimento a oficinas em São Francisco e Los Angeles, em 1993 esse pedaço de teatro americano também fez seu caminho até o National Theatre em Londres, a metade britânica de uma pouco usual estreia dupla com o Walter Kerr Theatre na Broadway. A peça começa em outubro de 1985. Faltam 15 anos para o ano 2000 e a corrente de medos apocalípticos se agiganta. O subtítulo das duas partes dão dicas disso. O da Parte Um, Millennium Approaches, ecoa os sentimentos solenes de alguns lugares enquanto o século XX se encerra — medos religiosos sobre o fim dos dias acompanhado dos medos geopolíticos pela contínua Guerra Fria. O subtítulo da Parte Dois, Perestroika, é o nome dado à política de reforma do Partido Comunista na Rússia sob Gorbachev e significa “reestruturação”. Ele demonstra não apenas os temas inerentemente políticos e históricos da peça, mas também o processo de reforma e renovação que nós vemos seguindo a agitação da Parte Um. O ano de 1985 foi aquele em que Ronald Reagan começou seu segundo mandato. Um conservador populista que teve um papel no fim da Guerra Fria, Reagan também ficou conhecido por sua política econômica, apelidada Reaganomics. Ela envolvia a redução de impostos pelo corte de benefícios sociais; essa ideia de “individualismo áspero” servia às noções de seus apoiadores sobre como a sociedade deveria funcionar e promoveu um crescimentou econômico de curto-prazo — mas também deixou muitos americanos vulneráveis. Em Perestroika, Louis confronta Joe quanto a uma série de decisões judiciais que refletem essa perspectiva reaganita e acusa o governo de evitar a responsabilidade pelo seus cidadãos sempre que possível. Mas grande parte da comunidade gay lembraria de Reagan por sua falta de ação na crise da Aids. O ano de 1985 foi também significante porque foi quando a morte de Rock Hudson, que tinha sido um amigo próximo e pessoal de Reagan dos seus dias como ator, forçou o presidente a reconhecer publicamente a Aids em um discurso pela primeira vez. Isso depois de 4 anos e 5000 mortes da epidemia, quando um mal incalculável já havia sido feito e a vida na comunidade gay alterada irreversivelmente. Isso significa que os anos 1980 foram um tempo sombrio para minorias sexuais, e homens gays em particular, em contraste com décadas anteriores, em que as coisas pareciam estar melhorando gradativamente. Os protestos de Stonewall em 1969 — que começaram em 28 de junho quando um grupo de clientes LGBT lutou contra o assédio policial durante uma invasão ao bar gay Stonewall Inn — havia dado o impulso para o movimento dos direitos LGBT. A primeira marcha do Orgulho Gay em Nova York teve lugar um ano depois, no aniversário da invasão. Pelos anos 1970, a comunidade gay se tornou um corpo ativista motivado e coeso. A década viu grupos como o Gay Liberation Front e o Gay Activist’s Alliance fazerem campanha para o fim de discriminação política e social baseada na orientação sexual. Eles se espelharam fortemente nos movimentos de contracultura dos anos 1960 e no Movimento por Direitos Civis. O espírito de liberação sexual combinada a essa nova atitude combativa significava uma liberdade muito maio para homens gays, particularmente em cidades grandes como Nova York e São Francisco. Esse foi um período de aumento de abertura e permissividade sexual; até aqueles que não estavam inclinados a promiscuidade eram capazes de simplesmente serem mais abertos e visíveis em sua sexualidade e seus relacionamentos. O início da Aids parece mais cruel quando considerado a essa luz; foi uma doença mais frequentemente espalhada pela relação sexual e então por sua própria natureza destruiu as duras conquista de liberdade social e sexual. Como a Aids dizimava a comunidade gay, esses dias permissivos se tornaram uma memória distante e o foco do ativismo gay foi radicalmente redirecionado para aumentar a conscientização e fazer campanha para tratamentos. E, em meados da década de 1980, não apenas os homens gays tiveram que contender com o medo de que liberdade sexual levaria à infecção, mas também com um ressurgimento da discriminação. Homens gays — e outros com Aids — viram-se perdendo seus empregos e suas casas. Cobertura de imprensa era frequentemente tendenciosa, homofóbica e pouco informada, e a resposta cultural por meio da televisão e cinema era mínima. Esses, então, são os graves eventos na história dos EUA com que Angels in America se envolve — uma das únicas peças de destaque a fazê-lo. É também distinta das outras em sua abordagem. Seus personagens não são ativistas como Ned Weeks em The Normal Heart (1985), de Larry Kramer; embora seja fortemente política e embora qualquer texto sobre a Aids seja inerentemente político, Angels in America não é um manifesto político. A responsabilidade pelo ativismo é passada à audiência — cabe a ela ser comovida à ação pela peça; ela não é instruída a isso. E onde As Is, de William Hoffman, mostra a crise através da narrativa doméstica e romãntica, Angels escolhe um caminho mais severo, mas talvez mais realista. A crise não faz “anjos” de todos os envolvidos, mas no lugar disso revela suas falhas muito humanas. Seus personagens são desafiados, separados e expostos pela Aids; eles deixam amantes, eles se tornam amargos e ressentidos de seu destino, eles vivem no medo da infecção e, no caso de Roy Cohn, negam tanto sua doença quanto sua identidade gay. E quanto aos próprios anjos? Em sua Nona Tese na Filosofia da História, o filósofo Walter Benjamin interpreta o desenho Angelus Novus, de Paul Klee, usando a metáfora do “anjo da história”, um ser celestial que testemunha os desastres do passado e presente, mas não pode fazer nada quanto a eles. O anjo é continuadamente jogado adiante por uma tempestade soprada pelo paraíso. “Essa tempestade”, diz Benjamin, “é o que chamamos de progresso”. Os anjos da peça são comparáveis: criaturas oniscientes, mas fundamentalmente sem poder. Enquanto o Anjo inicialmente parece uma resposta divina incandescente à doença de Prior, nós logo vemos que o conselho angelical está desamparado para atender a crise que as nações do mundo enfrentam. Abandonados por Deus, eles estão condenados à inércia e inútil burocracia, para a qual sua única solução é uma doutrina justificativa da inação. Os paralelos entre a filosofia conservadora de não intervenção, a filosofia americana mais ampla de individualismo e a literal falta de ação do governo Reagan parecem claros. Incorporando a história social, política e espiritual da América como eles fazem, os anjos da peça nos confrontam com a ideia da história como um imperativo para mudança. Os anjos podem resistir ao progresso, mas a raça humana, através de Prior, deve continuar a lutar por ele. Ao exigir “mais vida” aos anjos, Prior pede por um novo futuro para ele mesmo e para outros como ele. “Me abençoe de qualquer jeito”, ele exige, rejeitando a política do status quo, rejeitando o tratamento injusto para com homens gays e outras pessoas com Aids, e pedindo para escrever um diferente futuro. Dra. Emily Garside é uma pesquisadora no uso do teatro como uma resposta cultural ao HIV/Aids.