O corpo do outro em “Nós”

Cesar Castanha analisa o filme “Nós”, que tem o bastante para permanecer em nossas lembranças - e em nossa angústia ao encarar o estranho corpo que se apresenta em cada espelho

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Em uma cena de “Nós”, novo filme dirigido por Jordan Peele (“Corra!”), Adelaide (Lupita Nyong’o) descreve para seu marido (Winston Duke) o medo que nutriu pela praia de Santa Cruz depois de um episódio de sua infância, quando se perdeu numa sala de espelhos. Por toda a cena, ela narra o episódio de costas para ele, com o reflexo de seu rosto se apresentando no vidro da janela. O foco da cena, no entanto, está nas costas da personagem, e o reflexo do seu rosto na janela seria meramente um detalhe. Agora, se você viu o trailer para o filme, provavelmente sua atenção estará voltada para o rosto de Adelaide refletido na janela, esperando que nele se revele a dualidade anunciada. Lupita Nyong’o, atriz vencedora do Oscar por “12 anos de escravidão” (dir. Steve McQueen, 2013), interpreta aqui, afinal, duas personagens: Adelaide e Red, opostos de um mesmo corpo, uma delas habitando a superfície, e a outra um domínio subterrâneo. A dualidade da cena, no entanto, não aparece no rosto refletido da personagem, mas em suas costas, que tremem levemente e encaram o marido sem lhe revelar os olhos. A expectativa de que algo aconteça, de que outro corpo interrompa a cena com um susto, apareça à janela, revele-se no reflexo de Adelaide, vai se desfazendo enquanto Nyong’o assume essa dualidade no próprio corpo de Adelaide. O horror não precisa vir do corpo do outro naquele momento, porque o que está dado em cena já é em si mesmo um corpo duvidoso, estranho, aterrorizante. “Nós” dá continuidade a duas características do horror de Peele, como apresentado por “Corra!”. A primeira, e mais óbvia, é a vinculação do gênero com um comentário crítico à cultura estadunidense e à experiência contemporânea da classe média negra no país. Jordan Peele não é o primeiro a construir alegorias sociais a partir do horror - essa é uma tendência até consideravelmente recorrente na tradição estadunidense do gênero, em obras como as de George A. Romero e John Carpenter -, mas, além de o autor trazer algo original ao partir da experiência americana de negritude, existe uma demanda pela atualização desse tipo de iniciativa alegórica, o que tem feito de Jordan Peele uma figura tão seminal para o horror hoje quanto Romero e Carpenter foram dos anos 1960 aos anos 1980. Não por acaso, Peele foi escolhido como apresentador na atualização da série “A zona da imaginação”, assumindo o papel antes iconicamente conduzido por Rod Serling, um precursor notável para Romero e Carpenter. Apesar de o filme não trazer sua leitura das relações sociais nos EUA de modo tão autoevidente quanto em “Corra!” (o que não é um problema, de uma maneira ou de outra), o trabalho alegórico aqui já é estabelecido desde o título do filme: “Us”, traduzido aqui simplesmente como “Nós”, reivindicando um segundo significado na sigla US, referente ao país. Existe aqui todo um aparato imagético e textual para sustentar essa alegoria: de referências a marcos da cultura popular americana, da música ao cinema, a um aceno às políticas de imigração e de segregação que são essenciais para a construção de uma imagem do país como unidade identitária, em outras palavras, para a construção de uma sensação de ser “americano”. A outra característica do horror de Peele que tem continuidade em “Nós” é a associação dessa alegoria social ao corpo dos personagens e atores. Em “Corra!”, nós vemos corpos negros encenarem uma branquitude que lhes é imposta, que viola a autonomia desses corpos e que os definem em termos de uma hegemonia branca. Em “Nós”, os atores (também, em sua maioria, negros) encenam uma identidade americana tanto ao interpretarem uma típica família estadunidense quanto ao interpretaram o seu duplo. No jogo de cena entre as duas personalidades, a ideia de um corpo americano (único e coerente) está sempre em tensão. Quando a família de Adelaide é pela primeira vez inteiramente confrontada por seus duplos, o filme acentua nessas semelhantes características que evidentemente se referem a uma representação racista (cartunesca, até) da negritude americana. A expectativa por coerência entre os corpos é dada por essas circunstâncias, produzindo uma unidade problemática – e, portanto, esses corpos se contorcem, tremem, sangram, é nessa produção de uma unidade problemática que está, afinal, toda a expressão de violência do filme -, mas uma unidade que ainda assim se apresenta, mesmo que seja no corpo dos atores. O elenco consegue render o aspecto inquietante das duas performances com que estão encarregados ao elaborar essa coerência controversa. Mesmo os atores mais jovens dão conta da complexa performance exigida pela encenação de Peele aqui: Madison Curry, Evan Alex e principalmente Shahadi Wright Joseph, que interpreta a filha mais velha das duas famílias, têm uma presença em cena que se dá não só por uma compreensão muito madura de seus personagens, mas do universo em que estão inseridos. Já Lupita Nyong’o, que, desde sua interpretação vencedora do Oscar, não tem recebido nenhum papel digno de sua capacidade criativa, apresenta em “Nós” uma performance para redefinir o gênero do horror, como Bette Davis, Mia Farrow e Isabelle Adjani antes dela. Em sua reedição do famoso tipo da “rainha do grito” (personagem feminina habitual do horror, usualmente no papel de vítima), ela quebra a coroa contra o próprio corpo; quero dizer, em outras palavras, que ela não está aqui para representar o gênero, fazendo os espectadores entenderem que estão em um filme de horror, mas, no lugar disso, ela é, ela mesma, a personificação do gênero. Há muito que se esperar ainda de Jordan Peele e Lupita Nyong’o, dois artistas talentosos no início da carreira, mas, enquanto isso, “Nós” tem o bastante para permanecer em nossas lembranças - e em nossa angústia ao encarar o estranho corpo que se apresenta em cada espelho.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.