O Passado, por Radamés Marques

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Pauline Burlet em O Passado

Tenho prometido este texto a Cesar há um bom tempo. Entre tantas idas e vindas, e também devido ao meu receio em revisitar o filme, ele ficou guardado, foi mexido, remexido, remendado. Não sei se é o melhor que eu poderia fazer, mas acho que é o mais próximo daquilo que eu poderia falar sobre o filme, e talvez sobre mim mesmo. Uma vez que eu tive que tentar revê-lo três vezes até conseguir chegar ao fim.

Normalmente quando revejo algum filme no cinema, tenho o hábito de levar alguns amigos. Com A Separação, de Asghar Farhadi, não foi diferente. Mas a reação de uma das minhas amigas acabou chamando-me mais à atenção do que o filme: "Como tu conseguisse assistir esse filme mais de uma vez?". A sucessão de acontecimentos que leva o espectador a um beco sem saída moral era tão sufocante, nas palavras dela, que era difícil que encarasse o filme por uma segunda vez. Não senti isso em relação a A Separação — embora concorde que o filme vai sufocando à medida em que os acontecimentos vão se sucedendo e os conflitos se avolumando como uma bola neve. Mas é curioso como essa impressão tomou conta de mim em O Passado, novo filme de Farhadi, quase que a partir do momento em que as coisas começam a desandar.

Mesmo para os desavisados que forem assistir ao filme sem saber que é de Farhadi, mas que já viram A Separação, não é muito difícil enxergar algumas familiaridades com o trabalho oscarizado do diretor iraniano. Em certos momentos ele parecia revisitar conflitos do filme anterior para entrar em questões tangenciadas ali, como a situação das crianças no meio do turbilhão que toma conta dos dois filmes e que aqui ganha tons mais fortes a partir do comportamento do pequeno Fouad (Elyes Aguis numa performance algumas léguas à frente de Quvenzhané Wallis e Haley Joel Osment em Indomável Sonhadora e O Sexto Sentido, respectivamente). Ahmad (Ali Mosaffa) volta à França, depois de quatro anos em Teerã, para assinar os papeis de seu divórcio com Marie (Bérénice Bejo). Esse retorno vai fazê-lo se deparar não apenas com a mudança natural,  fruto do distanciamento e do tempo, daquelas vidas que ele deixou para trás quando foi embora, mas também com os conflitos dessa nova realidade, acentuados por sua volta. Marie, agora, está morando com Samir (Tahar Rahim) e seu filho Fouad (Aguis), a esposa de Samir está em coma, e Lucie (Pauline Burlet) não aceita o novo relacionamento da mãe de jeito nenhum.

É no meio disso tudo que Ahmad e o espectador são jogados. Tentando entender o que está acontecendo com aquelas pessoas e como elas chegaram àquele ponto. Assim como em A Separação, a impressão que se tem é a de eventos que vão se somando e se agravando, como uma bola de neve, destruindo a vida daquelas pessoas e jogando o espectador num beco sem saída. Porque por mais que você vá conhecendo aquelas personagens e por mais questionáveis que tenham sido suas atitudes, é possível culpar alguém pelo estado de coisas a que chegaram? Se em A Separação, o recorte de uma sociedade iraniana heterogênea acabava pintando um quadro estranhamente familiar para nós ocidentais, na medida em que aqueles conflitos não nos soava em nada distantes, O Passado, situado numa França multicultural, dá a impressão de que Farhadi estava sempre falando mais sobre pessoas e como elas se isolam umas das outras do que sobre sociedades em geral. E como desse isolamento brotam os conflitos com os quais elas não conseguem lidar.

Nesse sentido, o estado de mágoa permanente em que Lucie está imersa parece ter menos a ver com relação entre Samir e Marie do que com a relação entre mãe e filha. Assim como o tratamento ambíguo dado por Marie a Ahmad, ora ela parece não ter superado o fim do casamento ao mesmo tempo em que, ou talvez exatamente por isso, faz questão de expor o ex-marido ao seu novo relacionamento; primeiro ao fazer Ahmad dividir o quarto com o filho de seu namorado e depois ao dizer, no momento da assinatura dos papéis do divórcio, que está grávida de Samir. E, por fim, o próprio Ahmad, que, como ficamos sabendo depois, abandonara Marie e as filhas dela para voltar a Teerã. São todos criaturas ambíguas, presas ao passado, ou tentando a todo custo fugir dele, mesmo que se autossabotem no processo — como Marie, que enxerga na gravidez a chance de superar a separação de Ahmad e construir uma vida nova com Samir, ao mesmo tempo em que não consegue parar de fumar, sintoma do medo de seguir adiante.

Materialização perfeita dessas relações fraturadas é a própria casa de Marie, que, num trabalho de direção de arte impecável, está numa reforma infinita em que se entulham velharias na mesma proporção em que a mulher, suas filhas, seu namorado e o filho dele acumulam mágoas e ressentimentos. Marie não consegue se livrar de tantos trambolhos, muitos associados a sua vida de casada com Ahmad, Lucie foge de casa e não quer saber do novo relacionamento da mãe, Samir não consegue permanecer na casa por muito tempo sem que a alergia à tinta usada na reforma o expulse de lá. E, ao mesmo tempo, Ahmad parece conhecer e transitar por aquele ambiente em que tudo parece meio fora lugar com familiaridade e intimidade o suficiente para assumir muitas vezes o papel que naturalmente seria de Samir se este não fosse repelido pela atmosfera de um ambiente cujas vidas ali remetem mais a um passado não superado do que a um futuro almejado.

Dessa forma, nada personifica mais o peso do passado na vida dessas pessoas do que Céline, a esposa comatosa de Samir. É a partir do coma dela que os eventos se desdobram e, mais importante, a partir do questionamento de quão importante realmente ele foi para que as coisas chegassem àquele ponto que Farhadi parece colocar o espectador e os personagens numa sinuca de bico. Até que ponto alguém realmente é responsável pelas atitudes de uma pessoa reconhecidamente desequilibrada?


Este é um dilema que Farhadi, assim como em A Separação, joga diante de nós sem nunca nos dar respostas ou insinuar os caminhos seguros para obtê-las. E à medida que começamos a tatear um caminho para encontrar estas respostas, eis que o filme vem e te tira o chão novamente. A impressão que se tem é a de se estar num labirinto no qual quanto mais se procura uma saída, mais perdidos ficamos, tal qual Ahmad tentando entender e mediar àqueles conflitos; encontrar sentido num evento que parece não ter sentido algum, quanto mais agentes responsáveis por ele. É uma sensação de estar preso às ambiguidades e contradições daquelas pessoas, emanada de maneira impactante na cena final do filme que evoca em si um mundo sem fim de significados e interpretações. 

Berenice Bejo em O Passado