Perdido na Tradução

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Há séculos a literatura convive com a difícil necessidade de ter obras traduzidas para outros idiomas. O desafio se intensificou à medida que a noção de autoria foi ganhando espaço no romance moderno e a prosa se tornando mais particular e complexa. E, se Dom Quixote já não seria fácil, como fazer com os devaneios modernos de James Joyce? E quem ousaria pensar equivalentes linguísticos para os regionalismos de João Guimarães Rosa?

Quando, no final da década de 1920, o cinema abraça o som e consequentemente uma linguagem verbal forte que lhe era inédita — pois as famosas cartelas do cinema mudo raramente tinham algum propósito além de explicar a ação da tela — pareceu que, na sua distribuição para outros idiomas, encontraria a mesma dificuldade. Não é bem assim.

Cinema não é literatura. As palavras no cinema não têm o mesmo propósito único e essencial das do texto literário, elas têm suportes imagéticos e sonoros que as sustentam e não teriam sentido isoladas. Ainda assim, há muitas queixas do que se perde, em termos de tradução e também de experiência cinematográfica, na legenda. Quais são essas permanentes dificuldades?

Há primeira delas consiste na compreensão do universo cultural que será traduzido. A literatura já compreendeu há tempos esse impasse e tem tomado os devidos cuidados para superá-lo — as notas do tradutor, por exemplo, são uma boa ferramenta. Ela pode fazer isso porque, ao contrário do cinema, não dita o ritmo do seu interlocutor. Quem vê um filme, no meio em que tradicionalmente foi feito para ser visto, na tela grande, está sujeito a um ritmo imposto pelo roteiro, pela montagem e pelas atuações, que normalmente ignoram a necessidade de tradução. Muitas vezes, portanto, perde-se o impacto de determinadas referências culturais. Nas comédias esse problema é mais sentido, pois o humor costuma depender da compreensão de determinados termos ou referências. Aquele que faz a legenda não tem tempo para elucidar o que não ficou claro ou mesmo não está sequer interessado nessas diferenças culturais, o que nos leva à segunda dificuldade.

Desde que encontraram concorrência nos modos ilegais de acesso a filmes — como os vários tipos e possibilidades de download —, as distribuidoras e emissoras de televisão, salvo exceções, estão cada vez mais desleixadas na produção das legendas. Uma prática, que já não era incomum, tornou-se mais frequente: a de traduzir um filme apenas a partir do material textual, sem o contato do profissional com o filme em si. Perceba a confusão que isso gera quando se traduz do inglês para o português, por exemplo. A língua inglesa não varia seus adjetivos em gênero ou grau. Quando o tradutor não tem acesso ao vídeo, ele pode não entender a quem ou que determinados adjetivos se referem, abrindo espaço também para vários erros gramaticais de concordância. Uma emissora de televisão já foi flagrada utilizando legendas clandestinas, fruto da distribuição ilegal, mais uma evidência do descaso.

Apesar disso, é bom sublinhar por que a legenda ainda é uma opção melhor para a compreensão completa e autoral da arte cinematográfica do que a dublagem. Optando pelo segundo, perde-se muito do caráter sonoro original de um meio que é, acima de tudo, audiovisual. O trabalho de entonação dos atores, por exemplo, deveria superar fronteiras linguísticas e, como já dito, conferir determinado ritmo ao filme que estaria em risco caso este fosse dublado. A solução, portanto, não está em dispensar a legenda, mas sim aprimorá-la como uma ferramenta crucial da sétima arte.