Quando Eu Era Vivo

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Antônio Fagundes e Sandy Leah em Quando Eu Era Vivo

A busca por significados ocultos com o propósito de agregar valor a obras artísticas vem sido firmemente rechaçada pela teoria das artes e da crítica já há várias décadas — tal como no texto Contra a interpretação, de Susan Sontag. As discussões acadêmicas acerca disso parecem ter ecoado no vazio quando nos deparamos com resenhas insistentes na tentativa de decifrar um filme e simbologia de cada plano. Ora, dizer que Gravidade tem algo de interessante no que pode ser associado ao processo de gestação é perfeitamente aceitável (digo a mim, não acho que o seria para Sontag), mas tornar Gravidade um filme indissociável dos seus possíveis significados ocultos é um tanto mais preocupante no sentido da análise de uma obra.

Em dias seguidos desta semana, vi o documentário O Labirinto de Kubrick (Rodney Ascher, 2012), que aborda os easter eggs de O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980), e o terror brasileiro Quando Eu Era Vivo (Marco Dutra, 2014). Como não tive o ímpeto de vê-lo até o final, dou a O Labirinto o benefício da dúvida de, durante o filme, desconstruir o discurso da primeira meia hora. Até aí, no entanto, ele se resume a uma lista filmada do Buzzfeed (considerando como as teorias em relação ao filme eram introduzidas, parecia também ser filmado peloBuzzfeed). A pergunta que assombra esse início de documentário é: “O que significa?”. O que significa o número na camisa de uma figurante? A revista lida por Jack Nicholson? Os enlatados na dispensa do hotel? Imagino ser realmente inevitável que, estando de várias formas tão próximo de Kubrick e O Iluminado, Quando Eu Era Vivo caísse vítima do mesmo tipo de questionamento.

O filme de Dutra já desperta certo interesse pela peculiaridade da premissa que impôs a si tanto quanto lhe foi imposta, a do filme de horror brasileiro com Antônio Fagundes e a artista pop (ela diz não seguir mais o rumo do gênero) Sandy. Somados a essas escolhas (que por si só já extraem alguns “Por quê?”) estão um roteiro e uma direção de arte que aparentam ter sido minuciosamente calculados, construindo uma sensação talvez intencional de tudo-está-ali-por-um-motivo.

Por Sontag e Oscar Wilde (“Somente as pessoas superficiais não julgam pelas aparências. O mistério do mundo está no visível, não no invisível”, disse o escritor), isento-me da responsabilidade de encontrar os motivos secretos de Dutra. O que no filme me tomou por completo, a parte que considero me caber melhor, é a construção estética do horror, ou melhor, a construção estética do mistério do horror. O fechamento sem solução é essencial ao tom que o filme constrói sobre si, é o horror pelo alcance de alguns símbolos do gênero, a tensão, o ocultismo, o medo do desconhecido. Quando Eu Era Vivo toma seu tempo para a consolidação do terror, para embasá-lo em um intenso drama familiar de abandono, loucura e estranhamento.

Para que se consiga essa intensidade e que ela se alie ao gênero, alguns momentos da direção se fazem essenciais. Como em todos os segmentos de filmagem VHS, a presença da mãe e o desenvolvimento da relação entre os irmãos — em uma brincadeira com o gênero, um irmão desafia o outro a ouvir vozes ocultas de atrás da parede. Nesse passado, a ausência do pai (Antônio Fagundes, absurdo) se faz muito fortemente sentida, assim como a presença do irmão mais novo, personagem que, quando entra em cena no presente (encarnado em Kiko Bertholini), está apenas esperando o fechamento de uma bela construção.

Mencionei parelelos com O Iluminado (já feitos, principalmente no que o protagonista, Marat Descartes, afirmou a importância de Nicholson para a sua composição) por como os dois filmes (Quando Eu Era Vivo talvez de forma mais contida) constrói o horror, conquistando o mistério e a não solução. Apesar de tudo, tenho certo apreço por essas tentativas de encontrar algo, pelo quanto é possível se extrair de um filme, ou de um objeto cênico de um filme, como um enlatado que faz referência à cultura indígena ou a cerâmica na forma da cabeça de um cachorro. São certas escolhas de objetos que, com possível pretensão, contribuem para a aura estética de um filme.


E a escolha por Sandy (ou de Sandy) é cereja por cima dessa cuidadosa construção estética. A sua inocência pede poucas expressões além de uma doçura evidente nos trejeitos e, principalmente, na voz. O seu canto ao final do filme tem força, acredito que foi, de tudo ali, o que mais me emocionou e puxou para aquele universo. Aliás, raro vi uso tão proveitoso de um elenco. Dutra conhece o material com o qual trabalha e usa as limitações e ilimitações de cada um a favor do filme. São vários os cuidados e nuances que não fazem falta apenas no horror, mas no cinema de gênero de forma geral.