“Então quem matou o mundo?”, por João Vítor Pessanha

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  “Meu mundo é fogo e sangue” Uma das sacadas mais inteligentes do cineasta George Miller nesse novo Mad Max foi incorporar os 30 anos entre Thunderdome e Fury Road ao arco do personagem. Isolado por todo esse tempo, num mundo cada vez mais desesperado e impiedoso, ele se tornou um animal cujo único instinto é a sobrevivência. A transformação iniciada no primeiro filme completa: Max dando lugar ao Mad. Só que esse isolamento, essa negação da própria humanidade, leva-o a um destino muito pior do que a morte que ele tanto teme: capturado, violado (o enquadramento não deixa dúvidas sobre o que aquele momento representa), enjaulado e transformado numa bolsa de sangue ambulante. É aí que ele cruza o caminho de Furiosa. Então vamos falar de Furiosa: imbuída por Charlize Theron com a determinação desesperada de alguém que está a ponto de abandonar qualquer tipo de esperança (a um passo de virar Max) mas que vê na sua missão uma última chance de dar sentido a sua vida, ela não só é a força que move a trama, mas o seu centro emocional. Furiosa não luta por si ou mesmo por uma ideologia, luta por todas as mulheres que virão depois. E, consequentemente, por todos nós: como a cena final deixa absolutamente claro, a ascensão da humanidade só virá com a liberação da mulher, a gente só vai chegar lá como iguais. “Nós não somos coisas” Chega a ser engraçado ver grupos de "direitos dos homens" denunciando a mensagem feminista escondida no filme. Porque não tem nada de escondido, não dá pra ser mais explícito do que o Miller foi aqui. Quando as esposas escapam da Cidadela, estão arriscando a morte pra negar esse patriarcado podre personificado por Immortan Joe. Definhando, impondo uma falsa autoridade a partir de regras e preceitos religiosos delineados apenas para garantir a manutenção do status quo, Immortan é a perfeita representação do mesmo sistema que está matando o nosso mundo. Misoginia, religião organizada, racismo, capitalismo... a forma varia, mas no fim das contas são apenas diferentes dispositivos de opressão. (Immortan abre as válvulas, deixa um pouco de água chegar aos miseráveis lá embaixo, fecha as válvulas. Trickle down economics em uma cena.) Cenas autoexplicativas não faltam: Max entregando o rifle pra Furiosa e servindo de apoio pra ela atirar; ele lavando o sangue dos inimigos com leite materno; uma das Vuvullini carregando sementes numa valise, literalmente a portadora da vida; as esposas se colocando na linha de tiro pra proteger Furiosa (ela luta por nós, mas quem luta por ela?); o impacto que um breve contato feminino tem no Nux, como isso reverte uma vida inteira de lavagem cerebral; Furiosa com uma faca nas costas, quase desistindo, mas se forçando a continuar quando vê sua parceira de luta subjugada; as crianças da Cidadela tomando a iniciativa de baixar o elevador; E o final, quando Furiosa tem o mesmo olho inchado que Max tinha ao final de Road Warrior (Mad Max 2). Max. My name is Max. Mas repare na morte de Splendor: após demonstrar incrível habilidade e presença de espírito ao desviar de uma pedra, ela começa a voltar para o caminhão quando sua perna falha e ela cai. Perna esta que falha apenas por ter sido alvejada por Max, antes dele se juntar à causa, quando ainda "não tinha nada a ver com essa confusão". Um toque genial de Miller, mostrando que queira ou não, todos os homens têm que tomar partido, não basta não oprimir ativamente. Assim como o uso e consequente destruição do Interceptor, símbolo máximo da sua independência e neutralidade. O contraponto disso sendo o clímax, com Max lutando como um louco, e Furiosa indo até Immortan para matá-lo (os homens têm a obrigação de ajudar, as mulheres precisam desse apoio, mas o protagonismo é delas). E é aí que o filme prova que nunca deixou de ser sobre Max. Ao se juntar a essas mulheres, a máscara cai. O personagem que tenta desesperadamente se convencer de que não se importa, que não quer se envolver, descobre uma causa pela qual vale a pena lutar. E é nessa luta, ao lado dessas mulheres incríveis, que Max redescobre sua humanidade. E tudo isso é perfeitamente inserido num filme que não para. Não existe separação, a ação é a trama, é o subtexto. Miller combina um roteiro que supera até mesmo Exterminador do Futuro na exposição das sequências de perseguição, com uma direção que alcança Scorsese em Goodfellas. Uma espontaneidade e vibração que só podem ser alcançadas com planejamento absurdo, por um diretor no auge do seu domínio sobre a mídia — e suficientemente insano. Obra-prima é pouco.