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Entre as anedotas que rodeiam Alfred Hitchcock (e seus modos interessantes garantiram que fossem muitas) estão as do filme que ele não fez. Em 1938, foi amplamente divulgado que o maior diretor britânico da década teria assinado com o produtor David O. Selznick para dirigir um filme baseado no naufrágio do Titanic, o que seria o primeiro filme americano do diretor. Evidentemente, a versão de Hithcock para o Titanic nunca aconteceu, mas, apesar das brincadeiras do diretor quanto à natureza extravagante do projeto, entre o primeiro filme americano que aconteceu e o que não aconteceu há semelhanças temáticas que vão além das característas autorais de um gênio.
Rebecca, A Mulher Inesquecível é um filme britânico feito na América. Baseado no best-seller de Daphne Du Maurier e protagonizado por Laurence Olivier, o filme se passa em Cornwall, mas é filmado na Califórnia. Faz sentido que Hitchcock não esteja disposto a abrir mão dos tipos ingleses tão depressa. Aliás, ele mantém em terras ianques a macabra polidez britânica. Talvez o que tenha mudado seja o trejeito dos seus personagens: a cômica classe média americana de Hitchcock é arrogante e pretenciosa.
Temos então, no primeiro filme americano, a história de uma mulher (Joan Fontaine) que é demasiadamente comum para ocupar o lugar de Mrs. de Winter, esposa de Maxim de Winter e senhora de Manderlay, uma tradicional propriedade inglesa. A primeira Mrs. de Winter, a Rebecca do título, morreu um ano antes de o novo casal se formar, e a sua aparente perfeição assombra o novo lar da protagonista. Acontece que Rebecca é um ídolo falso, uma ilusão da elegância facilmente associada à aristocracia.
Quando cai a reputação de Rebecca, cai também o símbolo local que representava como senhora de Manderlay. Desmoralizada, a aristocracia é forçada a ceder aos que não tem nome, à segunda Mrs. de Winter, à inafundável Molly Brown. Em Manderlay, assume-se que Rebecca morreu em um naufrágio. Na ficção, du Maurier manteria a ironia da vida real. E a nata britânica, orgulhosa de sua invencível marinha, morreria no mar a caminho da América. Em Rebecca, é a assustadora Mrs. Danvers, governanta de Manderlay, quem diz: “Ela foi derrotada no fim, mas não por um homem, não por uma mulher. Foi pelo mar”.
Diferente do naufrágio do Titanic, no entanto, em Rebecca a aristocracia não afunda totalmente. O segundo casamento de Maxim, à americana, reforma as maneiras sociais inglesas mais do que as questiona. Ainda que humilde, a segunda Mrs. de Winter permanece senhora de Manderlay. O fim de Rebecca, do casarão e da fiel Mrs. Danvers não será o fim de uma sociedade hierárquica, mas antes uma adaptação aos modos do novo continente.
A transição inicial para a América provoca a submissão de uma burguesia encantada e temerosa diante das tradições nobres. Ansiosa por participar de uma vivência social antes exclusiva a determinados sobrenomes, ela aceita um lugar secundário na suntuosa mesa de jantar. Quando a fragilidade da aristocracia é exposta, a burguesia, mais consciente do jogo de aparências, exige, além de um lugar político, uma autonomia cultural. Quando a segunda Mrs. de Winter descobre a verdade sobre Rebecca que o marido tanto se esforçou para esconder, este a acusa de ter perdido o “olhar inocente que amava”: “Em poucas horas você envelheceu muito”.
Maxim, apesar de tudo, é o último cúmplice da esposa. Ele não busca apenas esconder o envolvimento dele no passado dela, mas toda a farsa que Rebecca impunha a Manderlay. De certa forma, a farsa de Manderlay. No primeiro capítulo do livro de Du Maurier, a segunda Mrs. de Winter conta que seu marido se recusa a falar do passado.
Não é incomum que se tente negar os acontecimentos da própria história com o objetivo de seguir em frente pela modernidade. A Primeira República brasileira se empolgou com a ideologia determinista, culpando a biologia pelo pouco “sucesso social” dos negros e esquecendo rapidamente os quatro séculos de escravidão. Esse tipo de memória seletiva acomete parte da intelectualidade oficial, institucionalmente protegida, quando é preciso justificar uma crise. O sadismo da pretensa superioridade aristocrática, no entanto, continuará na cabeça de Hitchcock enquanto consolida o seu cinema nos EUA. Na mesma década, ele dirigiria Festim Diabólico e, pouco depois, o mais complexo Os Pássaros. Para Hitchcock, o que nossa arrogância foi capaz de aceitar como circunstância no passado volta para nos assombrar. É inútil até mesmo fugir pelo oceano.