Sinfonia da Necrópole

Escrito en BLOGS el


A relação entre a cinefilia e a própria realização do cinema costuma estar clara nas filmografias mais autorais e inspira filmes bem interessantes (os mais interessantes, eu me arriscaria a dizer). Mas é particularmente curioso quando o que o cineasta traz para a sua obra é uma cinefilia pura, ingênua, vítima do mais cego afeto por um conjunto de filmes perdidos em pontos distintos do cinema de gênero. Essa é a cinefilia de Sergio Leone, Quentin Tarantino, Todd Haynes e da Filmes do Caixote.

O primeiro longa-metragem da produtora, Trabalhar Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011), chamou certa atenção como um ótimo possível filme de terror. A incerteza está na maneira como ele sugere o gênero sem se entregar a ele. A assombração que incomoda os personagens funciona mais como um paralelo dos seus dramas cotidianos e da contestação política do filme que como solução de trama.

Quando Eu Era Vivo, filme seguinte de Dutra, já vai mais além na fronteira. É de fato um filme de terror, não sequer teme se vender dessa forma. O que há de fantástico nas relações familiares do filme não pode mais ser desassociado delas. Antes, um terceiro nome do grupo, Caetano Gotardo, experimentou com as possibilidades narrativas do filme musical em O Que Se Move, pontuando histórias brutas com os doces lamentos de seus personagens.

Quando o protagonista de Sinfonia da Necrópole (Rojas, 2014), o filme mais novo do caixote, Eduardo Gomes, apresentou-o no Janela Internacional de Cinema do Recife, repetiu o que, segundo ele, a diretora dizia sempre: que Sinfonia da Necrópole era inspirado no teatro de Brecht, nos musicais da Disney e em “maravilhosos filmes brasileiros dos anos 1980, como Lua de Cristal”.

É fascinante que existam pessoas fazendo filmes a partir de referências como essas, buscando e respeitando-as. Isso possibilita a pluralidade do cinema e ainda resulta em obras muito pessoais, pelo resgate de filmes que fazem parte de uma memória cinéfila. Um amigo definiu muito bem esse tipo de cinema, “Os filmes que eu nunca fiz”. É a nostalgia por uma maneira muito específica de perceber o mundo. Esse retorno é lugar-comum na história da arte. Mas ao Filmes do Caixote se acrescentam as imensas possibilidades de construção de uma nova geração da cinefilia. Aquela que nasceu no VHS e se formou no Torrent, que não está mais limitada a escolhas de cineclubes, guias da televisão ou catálogos de videolocadoras.

Não quero sugerir que as referências de filmes como Sinfonia da Necrópole se limitem ao nicho de gênero mencionado. Há nele uma consciência da história do cinema e das tantas teorias que observaram e conduziram diversas escolhas estéticas; as de Sinfonia da Necrópole, por exemplo, parecem ter base sólida nesse conhecimento. É gostoso termos um cinema tão rico em referências ao próprio cinema (o título do filme, inclusive, é um esperto trocadilho com um subgênero de documentário) no mesmo ano e Festival de Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014) e Ventos de Agosto (Gabriel Mascaro, 2014), de diretores que costumam fazer cinema colocando teorias (suas ou de outros) em prática.


Talvez o que mais me incomode em Sinfonia da Necrópole seja justamente um excesso de consciência do momento por que passa o cinema. Rojas entende muito bem que está fazendo um musical tradicional num país que não experimenta o gênero sem querer modificá-lo há mais de 20 anos. Por outro lado, a diretora é mais uma vez perspicaz no diálogo político com as relações da cidade contemporânea, colocando um cemitério como cenário cênico para uma metáfora inteligente da especulação imobiliária. E, também, Sinfonia da Necrópole é tão gostoso e aconchegante como um filme de domingo à noite ou sábado de tarde, daqueles de se deixar encantar na frente da televisão e fazer de tudo para conseguir driblar as regras domésticas e biológicas e conseguir ficar acordado até tarde — e chorar quando perceber, no dia seguinte, que cedeu e dormiu. Sinfonia da Necrópole está muito além do filme, atrelado a uma memória de cinefilia instintiva, mas não menos apaixonada.