Somente Deus por Testemunha (1958)

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Dois casais dividem um vagão de trem. Um deles, de modos mais livres e roupas simples, ri de uma pequena nota no jornal sobre os banheiros do muito falado Titanic. O luxo ridicularizado ofende o segundo casal, aristocrata, que censura os companheiros de viagem. Pelo bem da boa convivência, estes se apressam em se desculpar por qualquer possível grosseria e apresentam-se como o Sr. e a Sra. Lightoller. O Sr. Lightoller seria segundo-comandante do Titanic. Esclarecido o mal-entendido, vê-se o aristocrata desabafar: “Eu o invejo. Os jornais dizem que ela é uma cidade flutuante. Símbolo de progresso; da vitória final do homem sobre a natureza e seus elementos”.

Com esta cena inicial, Somente Deus por Testemunha (Roy Baker, 1958) constrói a base para tudo o que será mostrado no filme. Mostrado porque um letreiro de abertura denuncia que o filme não percebe a si mesmo como ficção, mas sim como uma tradução de histórias reais para o cinema. Diferente de Titanic (James Cameron, 1997), seu muito mais popular irmão caçula, Somente Deus por Testemunha não sente a necessidade de amarrar pedaços de histórias em um grandioso romance frankenstein. Não há Jack e Rose ou qualquer personagem que pese esmagadoramente à trama. E, com o enredo dividido em tantos, a empatia por cada pessoa que figura no navio é maior.

E que variedade de pessoas! Os jornais do severo aristocrata estavam certos, o Titanic era uma cidade flutuante, uma cidade europeia de início do século XX, para ser mais específico. A alta sociedade, de arrogante confiança em si mesma e no seu poderio, dividia o espaço com a pequena burguesia e os trabalhadores, os dois primeiros pouco conscientes da presença dos terceiros. Sabe-se que dois marinheiros são o bastante para cada bote salva-vidas, e não se imagina que a terceira classe vá ousar exigir mais espaço que isso. Eles ousam, como logo ousariam em cidades muito parecidas com aquela.

A pose nobre, consequência e mantenedora do luxo, cada vez mais parecia alienada às mudanças sociais e políticas do novo século e merecedora da ridicularização burguesa. A inafundável Molly Brown, presente nos dois filmes,  é uma boa representação da ascensão da nova ideologia burguesa: aquela do homem (que pouco a pouco pode também ser uma mulher) que se resolve em si mesmo, tomando iniciativa por si e pelos outros, sendo firme e evitando firulas.

Enquanto Somente Deus por Testemunha permite à burguesia triunfar. Também proporciona um belíssimo confronto da classe operária com seu, em breve antigo, inimigo. Desesperados para conseguir levar suas mulheres e filhos a bordo nos botes, trabalhadores irrompem no salão de restaurante do navio e, por alguns segundos, contemplam seu vazio e sua imensidão. “A primeira classe”, um deles observa perplexo demais para estar indignado. Logo eles seguem a correr por suas vidas. Minutos depois, o filme nos dá um plano da cozinha, as mais finas louças e iguarias da Europa  se misturam às ruínas no chão e preparam-se para uma vida obsoleta no fundo do mar.

Dos diálogos mais simples à louvável e contida megalomania da produção, Somente Deus por Testemunha é um filme bonito e muito consciente do que está mostrando. O amado Titanic deve muito ao filme — e vice-versa, pois, no que a referência é engrandecida pelo referenciado, ao mesmo tempo o engrandece com o gesto de reconhecimento. Ainda hoje a viagem é usada como metáfora para a decadência ideológica da aristocracia inglesa, vide a ótima primeira temporada de Downton Abbey, na qual o acidente desencadeia conflitos de classe velados. Ou talvez, como disse meu colega Julio Pereira: “E afundou. Significa: sem mais metáforas.”