Um espaço entre dois quartos em “Me Chame pelo Seu Nome”

Escrito en BLOGS el
por Cesar Castanha “Eu tenho uma ideia — eu ouso dizer erroneamente — que você se sente mais em casa comigo em um quarto.” “Um quarto?”, ela ecoou, perdidamente surpresa. “Sim. Ou, pelo menos, em um jardim, ou em uma estrada. Nunca em um verdadeiro campo como este.” A room with a view – E. M. Forster Recentemente, viajei a João Pessoa para um Congresso. Lá, fiquei na casa antiga dos meus tios, que haviam se mudado há pouco tempo. Era a mesma casa que eu havia visitado algumas vezes na infância, quando estive em João Pessoa pela última vez. Ao entrar, deparei-me com um apartamento aparentemente habitado: móveis, objetos decorativos, plantas, cada um em seu devido lugar. E, imediatamente, fui surpreendido com uma memória afetiva daqueles espaços, pedaços específicos da casa me tocavam como um déjà vu nostálgico. Mas os meus espaços, minhas lembranças da casa, não correspondiam totalmente à materialidade do que estava diante de mim. As conexões entre os espaços não faziam muito sentido, alguns ambientes faltavam, outros pareciam ser mais amplos. Fui deixado, então, com dois mapas contraditórios de um mesmo lugar, percorrendo ao mesmo tempo o espaço material e afetivo, ainda que de algum modo eles não fossem conciliáveis. A casa onde Elio (Timothée Chalamet) mora com seus pais (os Perlmans, interpretados por Michael Stuhlbarg e Amira Casar), em Me chame pelo seu nome (dir. Luca Guadagnino, 2017), é apresentada por Guadagnino como um desses conjuntos de espaços inconciliáveis. O mapa da casa, importante de uma maneira até pragmática para a relação entre os personagens, é tratado com ambiguidade pela câmera e pela montagem do filme, que está mais interessada nos pequenos cantos e esquinas do que nas totalidades do espaço. Quando Oliver (Armie Hammer), um estudante vinculado à pesquisa do professor Perlman, instala-se na casa, Élio é forçado a ceder seu quarto e se mudar para um vizinho, separado de Oliver (ou unido a ele?) por um banheiro conjugado. O caminho entre quartos, um entre-espaços central para esses personagens, ressalta a imprecisão cartográfica do filme. Como caminhar, sem um mapa, de um quarto a outro? Como descobrir esse espaço comum? Gosto de como Guadagnino repete planos ou locações (uma mesa no café da manhã, uma pequena piscina, uma praça ao centro da cidade) onde os personagens se encontram, lugares que compartilham. A Itália que se revela nesses espaços é como um quebra-cabeça antigo, esquecido em algum armário por anos, em que muitas peças faltam, e as que restam não se encaixam: terraços, paredes lisas, a fachada de um bar, um quadro de Mussolini acima de uma porta. Vagando juntos de bicicleta, os passeios de Élio e Oliver poderiam ser os passeios feitos por qualquer turista, a questão é que foram feitos pelos personagens já há muito tempo, nos anos 1980 em que o filme é ambientado. E a distância faz daquele espaço e tempo agora inapreensíveis. Mas talvez sempre o fossem. Presos à experiência de Élio, somos várias vezes confrontados com a ausência de Oliver, que sai de cena, dos espaços conhecidos, sem nunca dizer para onde. Não deter preciso conhecimento dos espaços do passado é algo que já tomamos como natural. Não ter os mapas para caminhar no presente já é bem mais incômodo. Andar sem saber o que se pode encontrar na próxima esquina é uma das angústias do turista. No romance A room with a view, de E. M. Forster, adaptado para o cinema pelo mesmo roteirista de Me chame pelo seu nome, James Ivory, a jovem Lucy Honeychurch sofre dessa sensação desconcertante ao andar sozinha por Florença. Desprovida da estrutura de conforto e atenção a que está acostumada, livre de sua chaperone, ela encontra em George Emerson uma companhia para essa caminhada incerta. Mais tarde no livro, outro homem, o noivo de Lucy, percebe que a moça não se sente confortável com ele no “verdadeiro campo”, apenas na estrada ou num quarto, de preferência um quarto sem janelas. Compartilhar de um espaço desconhecido, e de uma inquietude diante desse espaço, é o que uniu George e Lucy para além do que o ideal de postura social mantido por qualquer um dos dois pudesse controlar. Em Me chame pelo seu nome temos a construção cuidadosa, gradual, desse espaço comum. Primeiro, somos apresentados a um desejo de estar junto que se dá numa observação mútua desses dois corpos masculinos. Esse desejo não se faz presente apenas num modo de filmar os corpos e o que cobre esses corpos (as peças de roupas usadas pelos personagens, cada uma delas, reivindicam esse desejo), mas também na recorrência de vestígios desses corpos, como a sequência de bermudas molhadas penduradas pelo banheiro, e os objetos de estudo do professor, esculturas de corpos masculinos, imagens construídas, e vislumbradas, como se pretendessem alcançar um certo ideal do desejo. O primeiro toque entre esses corpos — um toque tímido, hesitante —, assim como os passeios incertos, seriam a próxima etapa na construção do espaço comum. Se o primeiro toque, uma tentativa de massagem durante uma partida esportiva, é conduzido pela montagem como um tipo de choque térmico, um susto (para os dois personagens) do qual é preciso se recuperar, os seguintes são dotados de uma bravura mútua na escolha pela aproximação. Diante dessa aproximação (literal, dos corpos em sua materialidade), uma variedade de espaços entre os dois quartos se revelam — o parapeito onde Oliver diz sempre ter estado, uma porta antes desconhecida —, consentindo aos personagens um estar junto, permitindo que confundam seus nomes. A realização final de Hélio, ou do filme ao observá-lo, talvez seja a de que estar junto, compartilhar um espaço, implica também na presença de terceiros, às vezes incômoda, às vezes suavizante. Mas, de qualquer maneira, trata-se de uma presença irrevogável, passível de interpelar até mesmo o mais íntimo close-up. Afinal, por mais afeiçoados que sejam os mapas que nos guiam pelo espaço, outros passos e outros mapas se impõem a bagunçar nossas fronteiras.