Vidas ao Vento

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Ao encerrar sua carreira com a romântica cinebiografia Vidas ao Vento, Hayao Miyazaki me parece extremamente consciente da riqueza de significados de sua canonizada obra. Recusando, em certa medida, os elementos fantásticos que o marcaram como uma das maiores, se não a maior, mentes criativas da animação japonesa, Miyazaki afirma, com este último filme, a unidade, coerência e força de seu trabalho.

Ao contar a história política, profissional e pessoal do designer de aviões Jiro Horikoshi, Vidas ao Vento permite ao seu sujeito, absolutamente real, o mesmo fascínio pela beleza e pelo horror que costuma recorrer àqueles que visitam os reinos mágicos de Miyazaki, como Chihiro (A Viagem de Chihiro) e Sofi (O Castelo Animado). O objeto de encanto, porém, remete aos primeiros filmes do diretor.

Em Serviço de Entregas da Kiki, a jovem bruxa protagonista tinha como meio de transporte as correntes de vento. O vento, sua força estética e seu potencial imaginário estão sempre presentes em Miyazaki, mais curiosamente nos muito políticos Nausicaa - a princesa do Vale dos Ventos e Porco Rosso, memórias, uma mais sutil, outra mais direta, do envolvimento japonês em duas guerras mundiais.

Digo curiosamente porque Vidas ao Vento atraiu para si o que considero uma muito fraca controvérsia. Parte da crítica ocidental tomou ofensa no que alega ser uma glorificação do homem que é, pelo menos parcialmente, responsável por parte dos horrores da Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, a cultura de camicases.

O desenho e os planos de Jiro para o desenvolvimento da aeronáutica japonesa foram eficientes e de fato usados com propósitos horríveis. Miyazaki, no entanto, não permite que isso nos escape nem por um segundo. Quando não mergulha nos diálogos imaginários e proféticos de seu protagonista com o italiano Caproni (“Aviões são belos e amaldiçoados sonhos, esperando para que o céu os engula.”), o filme ainda demonstra ter forte consciência do quadro maior que a genialidade de Jiro representa.

Pequenas cenas envolvem o filme politicamente e ficam cara a cara com a contradição dos personagens e seu universo, o nosso. Os estranhos preconceitos revelados em uma visita à Alemanha, a noção da proximidade da Guerra e a priorização, em um país pobre, dos gastos militares. Mesmo as visualmente deslumbrantes cenas dos aviões em teste, com o piloto harmonizando-se ao vento em fascinantes rodopias aéreas, são dotadas de angustiante melancolia. Talvez essa sensação seja um mero fruto do conhecimento que se tem do destino terrível que está sendo ali traçado e testado, mas me parece claro que Jiro compartilha desse conhecimento e sua consequente angústia. E, quando a figura de um piloto em para-quedas emerge de um avião-teste agora abandonado, sinto o meu momento de estranha e exagerada aflição ser correspondido do outro lado da tela.


O tom melancólico, que acompanha o protagonista por todo o filme, é sempre elucidado pelos sonhos com Caproni, em que as contradições, e a sua condição de escolha, são verbalmente expostas. Miyazaki nos convida a ver a beleza que se esconde no horror. “O que você escolheria, um mundo com pirâmides ou um mundo sem?”, pergunta o italiano. Ao final, com tanto que Jiro  sacrificou, afetivamente, pela conquista do seu obsessivo sonho, e com toda a dizimação — da vida e dignidade humana — que tomou o Japão durante a Guerra, acredito que Vidas ao Vento não se propõe a responder a própria pergunta, mas merece ser reconhecido bravo o bastante para perguntá-la.