A hora e a vez dos corpos abjetos

As fissuras que se abrem só possuem um destino: colocar abaixo o sistema de sexo/gênero que ainda organiza partidos e os espaços de poder

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Escrito en COLUNISTAS el

Com a abertura das urnas no último domingo um fato mobilizou a opinião pública, setores tradicionais do jornalismo, só não mobilizou parte de alguns teóricos e militantes que nos últimos anos vinham atacando os movimentos identitários e depositando nestes a culpa por derrotas eleitorais: a eleição de LGBT, feministas, e negr@s em todo o Brasil. Isso é apenas o começo de um caminho sem volta. As fissuras que se abrem só possuem um destino: colocar abaixo o sistema de sexo/gênero que ainda organiza partidos e os espaços de poder tais como as Câmaras municipais et caterva.

O fato de que candidaturas LGBT tiveram votações expressivas nas principais capitais do Brasil (SP, BH e RJ) só surpreendeu 100% aqueles que passaram os últimos anos se ancorando e exercendo poder a partir das estruturas de poder normativas. À esquerda e à direita os corpos não heterossexuais, os corpos negros, os corpos feministas sempre foram jogados não para o segundo escalão, mas para o fim da fila. Sempre diziam: precisamos resolver as coisas que importam, precisamos resolver as questões da classe trabalhadora, é a economia estúpida!

O discurso neoliberal que arregimenta o Homem Econômico e a tradição como ferramentas organizadoras da sociedade tomou conta não apenas dos antigos liberais e da geração vindoura, mas também contaminou as mentes e espaços dos lugares que deveriam estar combatendo tal mecânica de dominação, que, a saber, não é nova, e data desde tempos coloniais: a transformação dos corpos não-heterossexuais em abjetos, sem valor, sem poder, enfim, sem significância é histórico dentro do Ocidente. Se não podem mais nos encerrar em manicômios, nos encerram em prisões, se nem um nem outro, que seja a eliminação.

Mas, como eu coloquei em texto anterior, as bixas, sapatonas, travestis, transexuais, as negras, as feministas somos historicamente teimosas: éramos expulsas, e lá estávamos novamente e assim sucessivamente, a base do chute, do grito e da raiva: nunca tivemos o privilégio de escolher outros sentimentos, mas, foi graças a essa produção de raiva, que também produzimos outras formas de amar, de desejar e, principalmente, de forjar hackeamentos políticos. Fingimos comportadas, para então, tomarmos de assalto.

É claro que nada está resolvido, até porque o capitalismo está aí, firme forte e só esperando para hackear o nosso hackeamento, é assim que funciona o neoliberalismo. O caminho pela frente ainda é longo, há de ser árduo, o governo fascista - que não admite a nossa existência - ainda está aí, foi derrotado em partes – eu não disse que as maricas iam te derrotar, Bolsonaro? -, e é como diz a velha canção: é preciso estar atenta e forte.

Cedo ou tarde, o tradicional sistema do sexo/gênero virá abaixo. O que estamos vivenciando com o resultado das urnas é apenas o começo em termos legislativos, pois, é preciso explicar, já faz muito tempo que estamos ocupando as ciências, as artes, as ruas… A saída do armário é um caminho sem volta e, a ocupação dos espaços legislativos era uma questão tempo e ele chegou, mas, não pensem que foi um caminho fácil, muita gente foi/é assassinada para que eu pudesse escrever esse texto e tantos outros corpos ainda o serão.

Historicamente, o objetivo daqueles que usufruem das estruturas de poder alicerçadas pelo sistema tradicional e neoliberal do sexo/gênero foi nos transformar em abjeções inúteis, refugos, porém, o que estas pessoas não esperavam – e pelo silêncio atual ainda estão incrédulas sem saber o que fazer – é que pegaríamos abjeção e a transformaríamos em potência política e transformação. Cedo ou tarde, o sistema normativo que insiste em eliminar os corpos abjetos vai abaixo.

Quem viver, verá, e quem não mudar, será atropelada.