Entre truculentos e grosseiros, a verdadeira ameaça é Moro

A verdade é que, caso Bolsonaro tente avançar contra a democracia (dificilmente irá), Moro encanta a República e leva seus descalabros em fogo brando, principalmente agora que saiu do governo

Moro e Bolsonaro (Divulgação/PR)
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Quando o então juiz federal Sergio Moro foi especulado como membro do recém-eleito governo de Jair Bolsonaro, ele serviu de alento para analistas políticos, jornais e jornalistas que justificaram o voto no candidato de extrema-direita.

Alegavam que Moro seria a “âncora” que limitaria os anseios totalitários do presidente Bolsonaro, o contrapeso “moderado”.

Acontece que o histórico do ex-juiz federal não é nem um pouco louvável. Sempre ficou ao lado do esgarçamento do devido processo legal, prisões indevidas, influências em eleições e flertes com a barbaridade e delinquência constitucional.

A escalada de arroubos autoritários de Moro teve sua estreia na operação agro-fantasma, onde onze pessoas acabaram presas indevidamente. Na mesma operação, ele conseguiu dinamitar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) com Doação desenvolvido pela Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB.

Após a operação foi inevitável a desarticulação das associações de agricultores que operavam o PAA, com redução significativa do número de famílias associadas, que passaram a ser relacionadas a esquemas criminosos inexistentes.

Em uma das ações da operação, homens fortemente armados cercaram a pequena casa que era alvo de um mandado de busca e apreensão de um carro no valor de 80 mil reais e de um iate, que segundo o processo seriam de um pequeno produtor rural que dividia o comodato com o pai e que nunca foram encontrados.

Segundo a denúncia, os bens seriam fruto do desvio de verbas de um programa que pagava R$ 8 mil por ano, algo em torno dos R$ 660 por mês.

O que fundamentou a operação? As vezes um agricultor não conseguiria entregar algum item previsto no contrato e então substituía por outro na mesma quantidade.

Não, os agricultores não estavam recebendo dinheiro e não entregando os alimentos, pelo contrário. Para que as escolas e regiões de risco alimentar não ficassem desabastecidas, os agricultores corriam para tentar abastecer com outros itens, batata por mandioca, quiabo por vagem e assim por diante.

Para Sérgio Moro, isso configurava um crime sofisticado de desvio de dinheiro que rendia milhares de reais com base nos pagamentos de um pouco mais de R$ 600 reais mensais.

No fim, os agricultores que foram presos por 48h, em 2013, tiveram sua inocência provada apenas em 2016, quando a juíza Gabriela Hardt afirmou que tudo não passou de um erro administrativo e ainda apontou que, durante a operação, a Polícia Federal sob a batuta de Moro sequer apreendeu todas as notas fiscais relacionadas ao caso.

A operação deixou estridente o desprezo de Moro pelo devido processo legal, que passou a usar as prisões preventivas para intimidar e forçar delações extremamente tendenciosas.

Mas não seria a primeira vez que Moro iria atropelar a lei. Durante toda a Operação Lava Jato, o então juiz coagiu e forçou delações como as famigeradas delações do Palocci que nada provavam e apenas acusavam.

O próprio ex-presidente Lula foi obrigado a fazer suas alegações finais após delatores em um processo envolvendo Instituto Lula. Ou seja, Lula deveria apresentar sua defesa sem ao menos sequer saber o que seus acusadores diriam.

Neste caso, o ônus da prova ficou para o acusado. O conceito utilizado durante toda a operação foi o de presunção da culpa.

Quando ministro as coisas pioraram

Mesmo com todo o histórico, foi quando chegou ao poder executivo que Moro decidiu mostrar o que era capaz.

Em sua campanha em prol do pacote anticrime, Moro defendeu itens como o excludente de ilicitude que feriam diretamente os artigos 23 e 25 do código penal, sob a alegação de que estaria defendendo a legítima defesa dos agentes de segurança, algo que já é vedado nos artigos citados acima.

Vamos aos artigos:

“Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I - em estado de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II - em legítima defesa; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Excesso punível (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Afinal de contas, se a legítima defesa dos agentes de segurança pública já é permitida amplamente no código penal, o que o ministro da justiça pretendia?

É aqui que se escancara a faceta autoritária daquele que o jornalista Reinaldo Azevedo chama de Mussolini de Maringá.

Moro, diferentemente de Bolsonaro, não tenta avançar com seu projeto de autoritarismo rompendo abruptamente as instituições e o estado democrático de direito. Ele sutilmente tenta legalizar o autoritarismo.

E é aí que mora o perigo. Ao longo da história, os regimes autoritários que existiram só conseguiram se estabelecer definitivamente quando legalizaram suas truculências. No Brasil, a ditadura recrudesceu ainda mais quando instaurado o AI-5. Na África do Sul, o bárbaro Apartheid não teria se estabelecido se não fosse legal. A história tem seus vários exemplos.

Outro exemplo dessa atuação para legalização da barbárie: Moro, quando assumiu a pasta da Justiça, defendeu um projeto de prisão imediata de réus envolvidos em casos graves de corrupção. O que ele pretendia com isso? Legalizar o descalabro cometido na operação agro-fantasma, afinal de contas, quem definiria o que é caso grave ou não de corrupção?

Com isso, ele estava tentando desmanchar a presunção de inocência, que é inclusive prevista na Constituição.

Ano passado, no auge das publicações das reportagens da Vaza Jato do portal The Intercept Brasil, uma portaria publicada no Diário Oficial da União deu poderes para delegados federais, que estão submetidos às ordens do ministro Sergio Moro, abrirem processo de deportação.

“PORTARIA Nº 666, DE 25 DE JULHO DE 2019

Dispõe sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”.

A portaria foi publicada depois da escalada de tensões entre o jornalista Glenn Greenwald e o governo Bolsonaro, o presidente inclusive chegou a dizer: 'Talvez pegue uma cana aqui no Brasil'.

E então não demorou muito para que a tal portaria fosse publicada.

A portaria dava poderes a delegados ou agentes da imigração que pertencem aos ministros do STF e, além disso tudo, ainda ataca (mais uma vez) a presunção de inocência ao permitir a deportação imediata de estrangeiros com operação investigativa ainda em curso e ainda considerá-los perigosos.

Mais uma vez Moro tentou legalizar o autoritarismo, agora para intimidar um jornalista.

É claro, não sem antes esbarrar na lei novamente. Não é permitido também a deportação travestida de extradição. O Art. 53 é claro:

“Não se procederá à deportação se a medida configurar extradição não admitida pela legislação brasileira.”

E por fim, o ministro da Justiça decidiu avançar contra alguns punks em Belém do Pará e o evento Facada Fest.

Segundo ele, o evento fazia ‘apologia ao crime’ com cartazes anti-Bolsonaro. Na verdade, o que Moro fez foi perseguir e atentar contra a constituição (novamente) ao abrir um inquérito para apurar se organizadores do festival atentaram contra a honra do presidente.

Apenas autoritários e radicais perseguem e punem charges ou chargistas, vide o ataque ao xenófobo Charlie Hebdo, alvo de um atentado terrorista após charges contra a religião Islâmica.

Resultado: na semana seguinte a Polícia Militar demonstrou um peculiar interesse em uma corriqueira zombaria entre times de futebol que acabou por proibir a letra B nas arquibancadas, algo que é tão hediondo quanto o inquérito do ministério da Justiça contra m festival de música de pequeno porte.

E, como já previa Pedro Aleixo na véspera do AI-5, alguns autoritarismos seriam piores nas mãos dos guardas da esquina.

Por fim, durante o motim dos policiais militares no Ceará, enquanto encapuzados, Moro pouco fez para acabar com a situação. Na verdade, ainda chancelou o movimento dizendo que os amotinados que colocavam terror no estado não poderiam ser tratados como criminosos.

Dias depois, seu afilhado de casamento, Agnaldo de Oliveira, que é diretor da Força Nacional e marido da deputada Carla Zambelli, enalteceu os amotinados, chamou os encapuzados de heróis.

E é por isso que Moro é pior que Bolsonaro. Com sua fala mansa, o ministro tenta dobrar a legalidade ao seu bel prazer de forma sutil, o que às vezes passa despercebido pela sociedade brasileira.

Já o presidente da república tenta, de forma frontal, fazer com que as instituições cedam aos seus caprichos.

Além disso, o generalato já deixou claro que não irá embarcar na intentona bolsonarista através dos generais Mourão e Santos Cruz, além de emitir uma nota reafirmando que manterá uma “distância segura” do governo.

O que acontece é que, enquanto Bolsonaro está sozinho apenas contando com seus apoiadores, Moro vem angariando a simpatia da imprensa, enquanto encanta os representantes das instituições.

A verdade é que, caso Bolsonaro tente avançar contra a democracia (dificilmente irá), são remotas as possibilidades de ter algum êxito, Moro encanta a República e leva seus descalabros em fogo brando, principalmente agora que saiu do governo, quase que de forma épica.

Cuidado com o Moro.

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