A romantização da maternidade na quarentena, por Renata Corrêa

Não é culpa das mães ver os filhos uma hora por dia quando estão trabalhando e tampouco não é lindo e romântico e nem é amor que toda carga de cuidados com as crianças na quarentena seja das mulheres

Simone de Beauvoir
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Por Renata Corrêa* Como diria Simone de Beauvoir, basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Estamos no meio de uma crise sanitária e a Folha, na véspera do dia das mães, me faz uma matéria "Crianças ganham mais tempo com as mães na quarentena". A matéria discorre sobre as maravilhas de ficar em casa pela perspectiva das crianças e das mães que ensinam os filhos a ajudarem nas tarefas domésticas, e os entretém com pipoca, filmes, cabaninha e se conectam ainda mais através fazendo os deveres de casa. A matéria em nenhum momento cita os pais. A palavra pai não aparece. Em algum momento achei que estava em delírio lendo um texto sobre como mulheres começaram a se reproduzir por geração espontânea na quarentena. Estamos no meio de uma crise de saúde sem precedentes na história recente. Mães e filhos estão confinados em suas casas tentando sobreviver, não adoecer, não enlouquecer. As mães que não estão desempregadas, com sérios riscos para o sustento de sua família estão trabalhando remotamente, sendo cobradas normalmente por produtividade e tendo que manter a jornada tripla agora em poucos metros quadrados, sem privacidade, sem separação entre sua vida pública e sua vida privada. A matéria da folha me lembrou o filme A Vida é Bela, onde um pai judeu num campo de concentração inventa uma realidade paralela para que o filho não perceba os horrores que eles passam. As mães como Roberto Benignis, jogando jogos de tabuleiro enquanto dez mil mortos caem lá fora e o estado lava as mãos. A diferença é que no filme a situação é inevitável e trágica, no caso das mães brasileiras a situação é fruto do machismo cotidiano e da negligência do estado. A Vida é Bela é ficção, a quarentena por conta de uma epidemia mortal é realidade. Ah, mas não é bom ficar com os filhos? Para algumas mães é, para outras, não. Individualizar o problema nos afasta no ponto central da questão. Gostando ou não da pipoca e cabaninha, a matéria não faz perguntas fundamentais sobre a situação das mulheres que trabalham. Se estávamos vendo os filhos poucas horas por dia antes da pandemia a culpa era de quem? Provavelmente a maioria das mulheres gostaria de uma jornada menos exaustiva e um equilíbrio saudável entre a vida pessoal e o trabalho. Mas os homens na maioria dos casos não dividem as tarefas domésticas, as empresas na maioria dos casos não têm nenhum benefício ou programa para pessoas com filhos e o estado brasileiro aniquila cada vez mais leis trabalhistas que poderiam dar alguma garantia para mães trabalhadoras. Não é culpa das mães ver os filhos uma hora por dia quando estão trabalhando e tampouco não é lindo e romântico e nem é amor que toda carga de cuidados com as crianças na quarentena seja das mulheres. Num contexto onde as pesquisas mostram que o o homem jovem é o grupo social que mais desrespeita as normas de saúde pública furando a quarentena, é interessante observar como a maternidade está sendo documentada durante a pandemia: a quarentena como um sonho realizado para mães e crianças, as mulheres confinadas de volta ao lar, ao seu lugar de origem, a domesticidade e a maternidade como a mais nobre, importante e mais que isso, única função que a mulher deve cumprir na sociedade. Gilead está ali, virando a esquina. *Renata Corrêa é roteirista e escritora