"Doutor Sócrates deve estar orgulhoso": a história de dois corintianos antifas que combatem o bolsonarismo

Em reportagem exclusiva para a Fórum, Flávio de Castro conta como a Gaviões da Fiel se mobilizou para combater fascistas pró-Bolsonaro na avenida Paulista

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*Por Flávio de Castro

Pelo menos três capitais brasileiras (Recife, Goiânia e São Paulo) possuem uma favela chamada Vietnã. A filial paulista, digamos assim, fica na Zona Norte, uma área pobre, severamente afetada pela epidemia e pelo descaso.

No último sábado, fazia frio em São Paulo, mas, parodiando o rap dos Racionais, nada estava bom para o corintiano Biu. Afinal seria mais um fim de semana no Desbrasil, onde manifestações golpistas a favor do fechamento do STF e do Congresso aconteceriam criminosamente e sem nenhum constrangimento dos envolvidos.

O atrevimento covarde desses manifestantes, que agrediram pessoas indefesas e dançaram junto a caixões em pleno apocalipse bolsonarista, revoltou este morador do Vietnã paulista, que saiu na rua “de bombeta e moletom” rumo à Estação Jabaquara de Metrô.

Biu tem 35 anos, é estudante de história e torcedor do Sport Club Corinthians Paulista, clube fundado em setembro de 1910 por cinco trabalhadores do Bairro Bom Retiro.

Na ocasião da fundação, o alfaiate Michele “Miguel” Bataglia disse aos seus companheiros: “O Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time”. Pois é justamente assim que Biu se considera um “loco do povo” e, sobretudo, mais um cidadão pobre violentado pela crise sanitária e pelo fascismo.

“Desde 1910 que a gente tem cor e lado, tá ligado?”, disse o corintiano ao desembarcar na Estação Brigadeiro, rumo à Avenida Paulista, onde encontraria com amigos que se identificam pelo amor incondicional ao time paulista e pelo posicionamento antifascista. Quando chegou próximo ao vão livre do MASP, ele ainda não sabia que, naquele dia, ele e outros setenta manos fariam história no Brasil.

"Bater na cara de enfermeira"
Filho de uma enfermeira, Biu não se conforma com a impunidade que acoberta as agressões covardes daqueles que vociferam pelo fim da quarentena e pela implementação do AI-5 no Desbrasil: “Sou corintiano no sentido de ser cidadão brasileiro revoltado com o bagulho, tá ligado? Que a gente tá vendo morrer gente na nossa rua quase todo dia. Ou então morrer gente na rua dos nossos amigo. E ainda vem gente bater na cara de enfermeira, vem gente agredir quem tá lutando pela democracia? Então vem bater na gente, mano. Se é treta o que eles querem, é com nóis mesmo.”

Para os olhos de parte abjeta da sociedade, aqueles mesmos que defendem o tal do “bandido bom, bandido morto”, as organizadas não passam de bandos de ladrões e delinquentes.

Nascidos na luta diária contra a pobreza e o preconceito, habituados a lidar com a truculência policial e a perseguição das autoridades, os Gaviões também são conhecidos – e respeitados – pelas diversas ações solidárias, como as tradicionais campanhas de doação de sangue corintiano, a distribuição de alimentos e agasalhos para os manos que estão na ruas e os cursos gratuitos de informática para fortalecer quem está em busca de emprego.

No dia 09 de maio, uma semana após a agressão física e verbal aos profissionais de saúde em frente ao Palácio do Planalto, o morador do Vietnã declarou que não haveria arrego e combinou, por Whatsapp, de se encontrar com outros corintianos na mesma hora e no mesmo local em que foi anunciada uma nova manifestação bolsonarista.

Evocando Sócrates, um dos líderes da Democracia Corintiana, Biu nos revela com suas próprias palavras aquilo que certo paquito e comentarista esportivo de sapatênis chamou de “politização do futebol”.

“É só olhar a história do Doutor Sócrates, né, mano? Ela fala por si só. É óbvio que, pra quem vive fora das mazelas sociais, fica mais difícil ter esse entendimento, né? Mas quem é pobre, loco, favelado, antes mesmo de se associar a uma torcida já tem entendimento de como funciona esse país e a desigualdade, tá ligado? É só ver nossa história, o Chico Malfitani, tantos outros…"

Contra todo ditador
O jornalista Chico Malfitani é, junto aos lendários Alcides “Joca” Souza e Flávio La Selva, um dos fundadores da maior torcida organizada do Brasil , com mais de 100 mil membros.

Em um programa sobre os 60 anos da agremiação de torcedores, exibido pela TV Gazeta em 2019, Chico explica a vocação política da torcida alvinegra, que nasceu nos anos de chumbo e tinha como objetivo derrubar o então presidente corinthiano Waldir Helu, notório apoiador da ditadura militar e deputado pelo Arena, partido da situação, que se elegeu consecutivamente por onze anos usando o nome do Corinthians.

Já que não era possível derrubar o tirano por dentro do clube, haveria de ser pela força da rua. Desde então, a torcida orgulhosa, seja nas arquibancadas, na quadra, nas caravanas ou nas subsedes espalhadas pelo Brasil e pelo Japão, entoa seu heroico brado, maloqueiro e retumbante:

“Contra todo o ditador que no Timão quiser mandar
os Gaviões nasceram pra poder reivindicar
o direito da Fiel que paga ingresso sem parar”

Quando chegou à Avenida Paulista, Biu encontrou os seus manos e, entre eles, Danilo Pássaro, corintiano de 27 anos, morador da Brasilândia, Zona Norte de São Paulo. Danilo foi quem falou em nome do movimento quando foi procurado pela Fórum e pelo portal Meu Timão (um dos maiores, senão o maior site corintiano de toda a rede) e finalmente por mim, que, além de eventual cronista, represento a Velha Guarda da Fiel BH, organizada que, desde 2003, reúne corintianos na capital mineira.

Segundo Pássaro, havia poucos gatos pingados vestidos com as habituais camisetas amarelas na principal avenida do continente sul-americano, palco tradicional das manifestações deste Desbrasil convulso. Diante da aparição dos corintianos, os genocidas bolsonaristas se desmobilizaram. A camisa amarela amarelou, digamos.

Doutor Sócrates
Danilo foi quem confeccionou a faixa preta que trazia o desenho de um punho cerrado erguido (gesto imortalizado por dois dos maiores jogadores brasileiro de todos os tempos: o onipresente Sócrates e o atleticano Reinaldo, notório opositor da ditadura) além dos dizeres: SOMOS DEMOCRACIA.

Os poucos apoiadores do apocalipse bélico-cristão sentiram o clima de hostilidade e trataram de se dispersar. A manifestação de bizarrices dos tais patriotas que ostentam camisetas oficiais da seleção de Neymar Jr., desta vez, não aconteceu.

Associado aos Gaviões desde os doze anos idade, Danilo, que trabalha como motorista de aplicativo, esclareceu que a faixa servia para externar os motivos do ato e esclarecer que não havia nenhuma filiação partidária.

Tratou-se de um fato político criado por cidadãos brasileiros, em sua maioria da Zona Norte da capital paulista, cujos parentes e parentes de amigos estão morrendo exponencialmente em função da epidemia de coronavírus.

“O ato surgiu da nossa indignação em relação aos acontecimentos das últimas semanas: a exaltação da tortura, pedidos pela volta da ditadura militar, agressão aos profissionais de saúde e jornalistas (…) Pensamos em fazer um contraponto e decidimos que o melhor a se fazer era impedir que houvesse alguma manifestação de caráter antidemocrático. Estamos de saco cheio, para ser bem objetivo. O luto de pessoas próximas estava se transformando em piada.”

Danilo é assertivo, seu papo não faz curva. Conhece a fundo a histórica relação da Fiel torcida com as manifestações democrática e lembra que torcedores alvinegros participaram da greve operária de 1917, reivindicando, entre outras coisas, a redução da jornada fabril para 8 horas diárias e o fim do trabalho infantil nas fábricas paulistas.

Ao ser questionado por um policial sobre o motivo da repentina aglomeração, ele explicou pontualmente para o soldado os fatores que legitimavam aquela mobilização e lembrou da agressão covarde a uma fotógrafa em Porto Alegre, quando bolsonaristas chutaram e esmurraram uma mulher caída no chão.

Esse tipo de covardia, como Pássaro fez questão de frisar, não foi reproduzido em São Paulo. Os setenta gaviões não agrediram a exígua manada bolsonaristas da cara amarela. Há um lema entre os membros dessa torcida no que diz respeito à violência: “Gaviões não age, Gaviões reage”. Como os fascistas bananeiros se acovardaram e se retiraram para seus automóveis importados, sempre acompanhados dos seus devidos poodles e Iphones, não houve confronto, pois isso seria uma inadmissível covardia, à maneira do que aconteceu com a fotógrafa em Porto Alegre.

Os 70 da Paulista
É importante reiterar que a mobilização pacífica dos torcedores corinthianos foi um dos fatos políticos mais importantes desde que a quarentena se iniciou.]

Diante da nefasta rotina de agressão e de abusos cometidos pelo presidente e por seus teleguiados, a sociedade brasileira não reagiu de forma efetiva em nenhuma circunstância. De maneira omissa, para não dizer cúmplice, as autoridades emitiram inofensivas notas de repúdio, e muitos “textões” nas redes sociais revelaram a oposição vacilante de muitos esquerdistas digitais.

A aparição dos gaviões na Paulista, sábado passado, foi exaltada pelos quatro cantos das redes e por canais de streaming, inclusive por torcedores de outras equipes e até mesmo de pessoas que dizem não se importar com futebol. O fato é que muitos brasileiros, corintianos ou não, desejaram estar ali entre os setenta da Paulista.

Certamente, nenhuma aglomeração pública é recomendada. Os “locos” alvinegros sabem muito bem disso e afirmam que o distanciamento social é única forma comprovadamente eficaz para se combater o avanço da pandemia. Ainda que o Pastor Waldomiro e Gabriela Pugliesi não acreditem nisso, milhões de brasileiros aderiram ao isolamento voluntário.

A reunião de dezenas de corintianos na Avenida Paulista obviamente foi alvo da reprovação de alguns higienistas de ocasião. Quando essa objeção é assinalada, Biu retoma a palavra e corta rente qualquer ímpeto de hipocrisia.

“Quando a gente sai pra entregar marmitex de madrugada para os moradores de rua, a esquerda vai lá e aplaude, né? Mas, quando decidimos agir a favor da democracia, vem gente reclamar que estamos furando o isolamento”.

Força colorida do idioma
Biu, como diria o escritor João Antônio, usa a “força colorida do idioma”. Seu dialeto da rua define o momento atual com muito mais destreza do que o vocabulário empolado dos engomadinhos isentos que tagarelam dia e noite na internet e na televisão. Tomados por um súbito e legítimo otimismo, fortalecidos pelo pioneirismo dos corintianos, diversos torcedores de diversas torcidas e clubes manifestaram seu apoio ao ato dos setenta corintianos, maloqueiros e sofredores. A tendência é que o movimento ganhe musculatura e se fortaleça com a adesão de novos militantes.

“Tem que acordar a quebrada, né, mano? Fortalecer quem mora do seu lado, não só quem é corintiano. E fortalecer eu digo é no sentido de dar amor e conscientização. Não é só dar um prato de comida pra pessoa e já era. Tem que dar um prato de comida e um amor, um carinho e conscientizar trocando uma ideia sobre a conjuntura do Brasil, né? Explicar por que tem morador de rua, por que eles não querem dar educação de qualidade para os pobres, por que os negros moram na favela… lembrar o que foi ditadura, lembrar o que meu pai e minha avó sofreram… Eu que não vou ser bundamole, não vou deixar minha filha passar por isso, tá ligado?”

Segundo Danilo Pássaro, lideranças de outras torcidas já entraram em contato com os manos da Zona Norte. Não entraram de forma institucional, ou seja, não estão representando suas respectivas organizadas, mas sim uma parcela da sociedade civil organizada. E bota organizada nisso.

“Estamos todos na mesma batida, (…) já fazemos a Ação Solidária Zona Norte, que distribui marmitex e cestas básicas diariamente. Mas agora é hora de defender a nossa democracia”. É importante repetir : criados na pobreza, engajados na periferia, acostumados a enfrentar a truculência policial, rotulados pelos infames “cidadãos de bem” e, sobretudo, dando continuidade a uma história de luta que começou em 1910, os setenta corintianos da paulista vieram ensinar os desavisados como se defende a democracia, com inteligência e com as garras afiadas de gavião.

Despedimos-nos de Biu, Danilo e dos outros manos que fizeram a História e, certamente, já fazem o futuro.

“Doutor Sócrates deve estar orgulhoso pra caralho, truta. Se a gente não fizesse isso, como que a gente iria colocar a cabeça no travesseiro. Defendemos a democracia e a opinião de cada um. E o futuro que queremos é esse, mano, é ver todo mundo bem, té ligado? É torcer para o Coringão, cantar 90 minutos e chegar em casa no domingo à noite e ter comida na mesa. É acordar na segunda e ir pro trabalho, sustentar nossa família, né, mano?”

É isso, mano Biu. É exatamente isso, meu truta. Vai, Corinthians!

*Flávio de Castro é escritor e professor de literatura