Fogo nos racistas a gente não aprendeu com letra de música, por Géssica Justino

A favela nunca deixou nenhum dos seus mortos sem protesto

Minneapolis. Reprodução
Escrito en BLOGS el

*Por Géssica Justino

Esse texto não tem uma introdução porque ele é vivo e está acontecendo agora, bem no lugar que você não tem o menor interesse em olhar.

Nos últimos dias, o caso do policial que esmagava com os joelhos o pescoço de George Floyd, homem negro, desarmado, comoveu o mundo todo.

George veio a óbito.

A atrocidade aconteceu em Minneapolis e vem sendo marcada pela sequência de protestos da comunidade negra que ateou fogo na delegacia local. Com certeza esse será mais um grande símbolo da luta contra o genocídio negro da história.

O que aconteceu em Minneapolis não é nada diferente do que rola no Brasil todos os dias. Mais precisamente, a cada 23 minutos. Sim, a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. E eu, como negra vinda de regiões periféricas, posso dizer que essa conta está subnotificada. A necropolítica, que dá ao Estado o poder de escolha de quem deve viver e quem deve morrer, segue a lógica racista de eliminação. E é assim que a gente morre todo dia. Eu mesma perdi as contas de quantas vezes morri pela morte dos meus. E posso lembrar, como se fosse agora, todas as vezes que a polícia me abordou como suspeita de coisas que nem sabia me explicar. Por dentro, eu só queria continuar realizando o sonho diário de me manter viva.
Para alguns esses sonhos - no plural porque se renova todo dia e se acumula - são interrompidos. Pareço repetitiva. Mas quando acaba o sonho de um, morre o sonho diário, semanal, mensal e anual de todos.

Voltando para o caso do Floyd, uma coisa que não me bateu bem foram as reações de parte da galera nas redes. Uma parte lamentando e outra parte : "Aqui no Brasil os negros não reagem assim.", "Enquanto o negro brasileiro não protestar…"
Opa! É isso mesmo? Brancos nos matam e ainda querem nos culpar pelo sangue que escorre das mãos de vocês?

PAREM DE DIZER QUE O PRETO BRASILEIRO NÃO PROTESTA PELOS SEUS MORTOS!
Vocês estão loucos? Em que país vocês vivem?
Com certeza no país que continua invisibilizando e silenciando a favela. .

Desde que me entendo por gente, toda vez que a polícia (TODA VEZ) mata gente preta - e isso não é pouco - a favela desce, ateia fogo em tudo, fecha rua, vai pro confronto com a polícia, matam policiais, mães berram! A favela não dorme.


Nas imagens de protestos no RJ e de Minneapolis (EUA), a causa é a mesma. É sobre necropolítica.


Mas diferente dos EUA, que está longe de ser bom, não temos o mínimo de proteção política, figuras influentes do mainstream não se posicionam, nosso poder econômico não é validado e com isso nossa voz silenciada.

É privilégio de classe /raça participar dos protestos pacíficos, nos centros, regados a corote, purpurina, peito de fora e Chico Buarque. Passividade é privilégio de classe. Aonde estão os pretos enquanto isso? Cuidando das prioridades básicas, claro. Trabalhar pra manter a família, ir e tentar vir, não morrer, não morrer na mão da polícia, cuidar dos seus, não morrer na mão do SUS e fazer tudo certinho pra vida presentear com alguma sorte.
Lembram daquela mãe preta que teve um ataque cardíaco seguido de morte porque presenciou a polícia matando um jovem preto na sua porta? O filho dela foi morto da mesma maneira.
Entendem? Não entendem é nada.

A favela é inquieta e cirúrgica. E esse é um sentimento / movimento comum pra pessoas pretas que já entenderam o projeto genocida.
Dói por George Floyd, Cláudia, João Pedro, Ágatha, Rafael Braga …
A diferença é que a mídia não tá lá e nem você que acha que a gente tá conhecendo a polícia hoje.

Mas é isso. Espero que o recorte branco festivo pare de querer nos ensinar o que a gente vive na pele.
Peço que vocês também parem de nos matar.
Não aprendemos a meter fogo nos racistas com letra de música, não.

Ao falar em letra de música…
"O morro desceu e não é carnaval."

(Todo respeito e carinho pelo Djonga que consegue ilustrar na música "Fogo nos racistas" o que nossa comunidade vive na real. Obrigada!)

#stopkillingus #paremdenosmatar #vidasnegrasimportam

*Géssica Justino é carioca, residente em São Paulo, especialista em desenvolver estratégias, acompanhar projetos e traçar soluções adequadas com criatividade.
Criou o Barbeiragem, um projeto que fala sobre a trajetória e experiência social de barbeiros negros em vulnerabilidade desde 1800 até hoje e sempre.
Atuou como pesquisadora em cultura popular, sociedade e análise
cultural no Brasil, em países da Europa e América Latina.
Acredita na diversidade como elemento essencial para humanizar processos e impulsionar o hoje e o futuro. Hoje, além de colaborações com marcas cria experiências compartilhadas onde o propósito é ser ponte de diálogo consciente para gerar transformação de pensamento e impacto.