Luta antifascista: história, princípios e sua relação com a democracia, por Fhoutine Marie

Cabe lembrar que mesmo sem prescindir do enfrentamento corporal, a luta antifascista não se restringe ao combate nas ruas e inclui a difusão de ideias do movimento por meio de veículos independentes, formação política e produção de conhecimento

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*Por Fhoutine Marie

Este texto busca recuperar a história da luta antifascista na Europa e seus desdobramentos nas Américas, os princípios fundamentais que identificam esta prática política e suas relações com a democracia e os governos autoritários contemporâneos. O objetivo é apresentar algumas reflexões a respeito da emergência da luta antifascista no ano de 2020 e sua relação com a política institucional, em geral, e em particular com a democracia. 

História 

A luta antifascista tem cerca de uma século e tem se manifestado em diversos países do mundo, capitaneada por sindicatos, partidos de esquerda e grupos autônomos que se unem para enfrentar regimes e grupos totalitários por meio da ação direta, sem depender da ação do Estado e suas instituições para travar este tipo de combate considerado vital. Trata-se de uma luta de esquerda, de grupos e indivíduos comunistas e anarquistas, conforme representado nas bandeiras vermelha e preta que formam o símbolo internacional desta luta.

Embora comumente lembrados pela resistência ao fascismo italiano e ao avanço do nazismo alemão no contexto anterior à Segunda Guerra Mundial, é possível identificar atividades e grupos antifascistas em diversos países e continentes, inclusive nas Américas. Outro momento importante para ilustrar o teor internacionalista da luta antifascista se deu durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39). No começo da década de 1930, após uma sucessão de governos autoritários, foi instituída II  República. Com a chegada ao governo de um primeiro ministro socialista, Largo Caballero, as forças conservadoras e católicas tentaram um golpe de estado para reconduzir um líder autoritário ao comando do país, encontrando resistência por parte dos anarquistas e do Partido Comunista Espanhol. Esses constituíram a Frente Popular, que concentrava as forças de esquerda. As forças de direita, lideradas pelo Gal. Francisco Franco, constituíam o Movimento Nacional, recebendo apoio do fascismo italiano e das forças nazistas. 

Esse processo de “internacionalização” do conflito marcou a mobilização de antifascistas de vários países, tanto para a arrecadação de fundos para financiar os antifas espanhóis, quanto de voluntários de vários países que se juntaram a eles no combate contra as forças conservadoras. Estima-se que 40 mil pessoas de 50 países tenham lutado na resistência. A maioria deles era de países europeus, mas houve também voluntários das Américas, dos EUA, Argentina, México, Canadá, Venezuela, Cuba e Brasil (cerca de 78 pessoas). Nesse período se verifica tanto no Brasil (que vivia sob governo Vargas) como nas Américas em geral, mas a América do Sul em particular, um movimento de perseguição aos imigrantes espanhois, o que já ocorria com os militantes italianos e outros europeus cuja cidadania era negada caso tivessem tido comprovada atividade política ou envolvimento com organizações anarquistas em seus países de origem. 

Um adendo que vale a pena mencionar sobre a guerra civil espanhola é a intensa participação de mulheres a organização Mujeres Livres - o que nos lembra que a luta antifascista é também uma pela emancipação das mulheres, portanto uma luta feminista.

Brasil e América Latina

Um episódio famoso da luta antifascista no Brasil no começo do século passado ficou conhecido como A Revoada das Galinhas Verdes, oficialmente chamada de Batalha da Praça da Sé, em 7 de outubro de 1934. Na ocasião os antifascistas brasileiros se uniram para impedir o comício de comemoração ao aniversário de dois anos do Manifesto Integralista, promovido pela AIB (Ação Integralista do Brasil). O resultado foram sete mortos e 30 feridos. A partir daí ampliou-se o sentimento antifascista e contra a política repressora de Vargas, o que impulsionou a formação de uma frente ampla progressista, a ANL (Aliança Nacional Libertadora). 

Antes disso já havia no Brasil, desde a década anterior, organizações comunistas e anarquistas voltadas para a luta antifascista como o Comitê Antiguerreiro, liderado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), o Comitê Antifascista, articulado pelos anarquistas em torno da Federação Operária de São Paulo (FOSP) e a Frente Única Antifascista (FUA), organizada pelos trotskistas da Liga Comunista (LC) e pelos militantes do Partido Socialista Brasileiro (PSB) paulista. O próprio Centro de Cultura Social (CCS), espaço anarquista ainda hoje em atividades em São Paulo, já havia organizado eventos contra os integralistas alguns anos antes deste confronto.

Cabe lembrar que mesmo sem prescindir do enfrentamento corporal, a luta antifascista não se restringe ao combate nas ruas e inclui a difusão de ideias do movimento por meio de veículos independentes, formação política e produção de conhecimento. Para citar alguns exemplos, além da já mencionada organização Mujeres Libres, que realizava, entre outras atividades, uma série de cursos voltada para capacitação profissional e emancipação das mulheres, houve também uma intensa atuação de uma imprensa antifascista, como o jornal O Homem Livre, fundado em 1933. Nos países do Cone Sul também é conhecida a atuação dos antifascistas, bem como de meios de comunicação, como relato o livro “Palavras Como Bala - Imprensa e Intelectuais Antifascistas no Cone Sul (1933-1939)”, de Ângela Meirelles Oliveira (2015). 

Havia também uma preocupação de conceituar o fascismo e sua história na América do Sul. Nesses estudos se destacam os trabalhos de duas mulheres anarquistas: a itálo-uruguaia Luce Fabbri e a brasileira Maria Lacerda de Moura. Esta possui dois livros sobre o tema, “Fascismo, filho dileto da Igreja e do Capital” e “Fascismo e Clero - Horda de Embrutecedores”, ambos de 1932. Já Luce Fabbri, filha de um ativista libertário italiano que imigrou para o Uruguai quando ela ainda era pequena, publicou em 1935 a obra “Camisas Negras”, na qual estão reunidas uma série de palestras proferidas em 1933 na Argentina. 

Um ponto importante destacado por Fabbri é a diferenciação entre o fascismo italiano e o nazismo. Segundo ela, na Itália foi produto do medo do capital diante do avanço operário, enquanto na Alemanha ele resultou do desespero das massas famintas que o apoiaram porque não viam alternativa. Ela observa também o arsenal simbólico do fascismo, desde suas vestes até seus mecanismos de manipulação das massas, destacando a dimensão psicológica do fenômeno, o desejo de poder e de conservação de status pelos dominantes (algo semelhante ao que Wendy Brown identifica na ascensão da extrema direita apoiadora de Trump e que pode ser vista entre os adeptos do bolsonarismo). Ela fala também de como o fascismo instaura um sistema de vigilância e torna a escola um meio de vigiar os pais. 

Antifascismo no século XXI

Os antifascistas contemporâneos estão intrinsecamente relacionados aos movimentos autonomistas, a uma resistência política radical suburbana em uma ampla aliança entre diversas correntes ideológicas progressistas, ligadas a espaços contraculturais, cena musical e estilo próprios, se organizando como uma espécie de subcultura de esquerda. Um traço marcante é a mobilização contra os marchas e eventos racistas e neonazistas. 

Desde as manifestações da última semana no Brasil e nos Estados Unidos a retórica conservadora tem se voltado para a criminalização dos movimentos antifascistas. Nos EUA a conversa partiu de um tweet do presidente Donald Trump, compartilhado por Bolsonaro falando em colocar os antifascistas como organizações antiterroristas. O discurso conservador estaria se aproveitando dos protestos antirracistas para praticar vandalismo. Aqui o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, foi na mesma linha, afirmando que os antifa são o braço armado dos anarquistas, os black bloc. 

Em 1 de junho, dia seguinte aos protestos organizados por coletivos e torcidas organizadas antifascistas em São Paulo e outras capitais brasileiras como Rio de Janeiro e Porto Alegre, o deputado do PSL-RJ, Daniel Silveira - o mesmo que quebrou a placa em homenagem à vereadora Marielle Franco durante a campanha eleitoral de 2018 - apresentou um PL que propõe a alteração da lei antiterrorista a fim de tipificar os grupos antifascistas como terroristas. Essa perseguição foi intensificada com o vazamento dados de pessoas ligadas aos coletivos e torcidas antifascistas na última quinta (4 de junho) pelo deputado Douglas Garcia (PSL-SP).

Segundo Mark Bray, autor de Antifa - Manual Antifascista, os antifascistas hoje são militantes envolvidos em campanhas e ação direta que preferem não depender da polícia, da Justiça ou do Estado para barrar o avanço da extrema direita. Alguns exemplos de mobilizações recentes dos antifa nos EUA são a participação no Occupy Wall Street e na adesão aos protestos do Black Lives Matter. 

Fascismo e democracia

Há um equívoco recorrente em associar o fascismo simplesmente a regimes ditatoriais, quando a experiência histórica nos mostra que o fascismo pode ser conduzido ao poder pela via democrática e que isso tem sido comum historicamente e nos tempos atuais, como se pode observar no Brasil, Estados Unidos e Ucrânia. O que se observa é que esses líderes eleitos democraticamente se valem da retórica da legitimidade que lhes foi conferida pelo voto popular para justificar suas ações autoritárias ou de esvaziamento das liberdades e instituições democráticas. 

Por fim, cabe lembrar de um ponto muito importante com relação ao fascismo contemporâneo que foi destacado por Bray no texto “Cinco lições de história para antifascistas” que é o seguinte: o fascismo rouba da ideologia, da estratégia, do imaginário e da cultura de esquerda. Ele cita exemplos da Europa, mas podemos verificar isso atualmente no Brasil, por meio das mobilizações de rua e do discurso contra corrupção, sem falar na apropriação de diversas pautas de esquerda, como a desobediência civil. 

Nesse sentido é muito importante lembrar que não existe vencer o fascismo nas urnas, assim como nunca é demais repetir: a luta antifascista requer radicalidade na luta, no discurso e em nossas práticas, pois se trata de uma luta internacionalista, anticapitalista, antirracista, antipunitivista e de esquerda. Antifascismo é coisa de anarquistas e comunistas, coisa de quem há um século resiste às investidas de Estados autoritários pela ação direta e pela solidariedade. 

* Doutora em Ciência Política pela PUC/SP, anarquista e feminista, é uma das autoras do livro Neoliberalismo, Feminismo e Contracondutas – Perspectivas Foucaultianas (2019), organizado por Margarete Rago e Maurício Pelegrini.

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