ajudar sem condescendência

ajudar sem ser condescendente significa reconhecer sempre a subjetividade humana e autonomia pessoal de quem está sendo ajudado.

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em campinas, moças organizam vaquinha e compram carrinho para mendigo. mendigo recusa o carrinho, por não ser como ele pediu. quem está certo? quem está errado? ajudar sem ser condescendente significa reconhecer sempre a subjetividade humana e autonomia pessoal de quem está sendo ajudado. poucas coisas poderiam ser mais difíceis. poucas coisas poderiam ser mais necessárias. * * * uma vez, uma amiga comprou um big mac, se arrependeu e saiu pela rua procurando o primeiro mendigo para desovar o sanduíche. ele respondeu: "obrigado, mas não como mcdonald's." minha amiga ficou indignada: "como pode ser tão ingrato? como pôde recusar minha ajuda?" e eu respondi: bem, pra começar, ele não te pediu nada. em segundo lugar, mesmo se tivesse pedido comida, isso não quer dizer que teria obrigação de comer qualquer coisa, como se não tivesse autonomia, critérios, vontade própria. em terceiro lugar, ele está sentado em uma calçada do lado do mcdonald's. vai ver não aguenta mais resto de big mac. e, por fim, mais importante, um sanduíche que você não quis comer não é tecnicamnte ajuda. ajuda seria você sentar com ele e perguntar o que ele precisa. o que você queria era fazê-lo de lata de lixo pros seus restos. e ele não quis. * * * recebi por email uma história presumivelmente acontecida em campinas. não sei se é verdade ou não. minha única fonte é um post no blog da disciplina de jornalismo aplicado da faculdade de jornalismo da puc-campinas. sou escritor de ficção, a veracidade da história pouco importa. ela é tão perfeitamente emblemática da nossa sociedade que poderia ser um conto literário escrito por um autor engajado ou uma instalação artística-performática promovida por um grupo teatral anarquista. se a história for verdade, é só porque ninguém a inventou antes. e vice-versa. para ler a matéria original, cliquem aqui. * * * vai ver o seu fabiano, o mendigo, tem transtornos mentais e jamais ficaria satisfeito com nada. vai ver as organizadoras, tão cheias de si por serem tão legais, trataram seu fabiano como se fosse um cachorrinho de rua e nunca ouviram o que ele tinha a dizer. vai ver, simplesmente, houve uma falha de comunicação e não conseguiram transmitir apropriadamente a seu fabiano que o carrinho não poderia ser como ele desejava. com base somente em uma única fonte, não dá pra formar conclusões. mas dá para levantarmos algumas reflexões. * * * nós, pessoas-privilegiadas-que-tentam-ajudar-quem-não-teve-os-mesmos-privilégios, deveríamos ter sempre em mente algumas questões levantadas pelo leitor maurício nos comentários da matéria original:
"[seu fabiano] fez o juizo de valor sobre o que é melhor para ele, ser mendigo não retira sua autonomia individual. não adianta bancar de caridoso e não ter algo muito mais fundamental que é o respeito. ... eu tenho origem muito humilde e já dependi de ajuda de pessoas caridosas como você. ... é horrível a pressão social para vc fazer cara de muito obrigado para qualquer coisa que vc ganhe e pior ainda quando as pessoas acham que te dar coisas significa que elas tem o direito de cobrar satisfação do que vc faz da sua vida e das coisas que elas lhe dão. dá vontade de devolver tudo e dizer “ó eu achei que isso aqui era dado, não sabia que eu tinha que te dar minha vida em troca!”, mas aí você é o “mal agradecido que não valoriza as pessoas que querem te ajudar”. você achou desproporcional a reação do sr. fabiano pq ela é incompatível com seu contexto social, mas é razoável vindo de alguém tratado como LIXO pela sociedade. estas pessoas desenvolvem barreiras emocionais muito fortes para defenderem-se da rejeição que sofrem dia a dia, ele não sabe que isso te magoou porque ele não é acostumado à seus sentimentos terem importância para outras pessoas. o mundo dele não tem nada haver com as convenções sociais a que vc está acostumada. vc é uma pessoa estudada e esclarecida e mesmo assim é difícil para vc transpôr as barreiras culturais que te distanciam dele, imagine o quão mais difícil é para ele! visto que vc se interessou pelo sr. fabiano eu sugiro que vc não perca o contato com ele, mas busque conhecê-lo verdadeiramente e estabeleça uma empatia com ele. isto vai ampliar profundamente a sua visão da sociedade e isso é algo muito valioso que o sr. fabiano pode TE DAR. ou vc pode só dar ouvidos para seus amigos abastados que vão lhe confirmar que ele é apenas um mal agradecido que não sabe se comportar."
* * * em 2005, eu estava em nova orleans com uma bolsa de estudos há somente uma semana quando a cidade foi atingida pelo furacão katrina. abandonei a cidade com a roupa do corpo, quase perdi meu cachorro, passei seis meses vivendo como refugiado. morando de favor, comendo de favor, estudando de favor. nunca fui tão ajudado em minha vida. nunca precisei tanto de ajuda em minha vida. sou extremamente grato por toda a generosidade que recebi. ainda assim, para mim e para muitos outros refugiados do katrina, a pior coisa da experiência foi justamente o peso psíquico de ser assim tão... profundamente grato. de nunca poder recusar nenhuma ajuda. de nunca poder falar nem um "ai". de ter que engolir em silêncio todos os nossos pequenos pedidos, reclamações ou cismas. de abdicar um pouco de nossa autonomia e de nossas vontades... porque, afinal, estavam nos ajudando e tínhamos que não apenas ser gratos (o que éramos) mas também demonstrar a mais profunda, completa, inquestionável gratidão vinte e quatro horas por dia (o que era massacrante). eu, que passei a vida inteira como um privilegiado brasileiro que gosta de ajudar, tenho toda a empatia do mundo pela frustração sincera das moças que organizaram a vaquinha. entretanto, o furacão katrina, bendito seja, também me permitiu ter a mesma empatia sincera pelo seu fabiano e pelo mendigo que não comia big mac. * * * esse texto foi modificado às 16h de 1º de setembro de 2014, a pedido de uma das organizadoras da coleta. foram retiradas algumas paráfrases que resumiam o texto da matéria original, assim como três fotos reproduzidas de lá. as reflexões propostas a partir desses fatos não foram alteradas. * * * gosta do que eu escrevo? então, assina aqui e receba os meus novos textos por email: www.alexcastro.com.br/assine