o privilégio de não representar toda sua classe

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pessoas brancas são pessoas. pessoas negras são pessoas negras. homens são pessoas. mulheres são mulheres. e por aí vai. por quanto tempo? ••• há um tempo visitei o projeto educafro, cujo objetivo é oferecer cursinhos e bolsas para pessoas negras e pobres cursarem o ensino superior. participei de uma reunião de acolhimento, só descobrindo lá que era uma reunião para quem estava buscando o apoio da instituição, não para quem estava procurando ajudá-la, via voluntariado, com seus privilégios (era o meu caso.) eu era a única pessoa branca na sala. durante o discurso, as pessoas negras que apresentavam o projeto explicavam privilégio branco para as pessoas negras não privilegiadas presentes. explicavam que não era vergonha ser cotista por ser negro e explicavam toda a bagagem histórica que levou isso a ser necessário. (explicaram também que quem consegue entrar na universidade sem cotas ou bolsas não é nunca a pessoa negra e pobre, é sempre a branca moradora de copacabana. e eu – branca e moradora de copacabana – me apertava na cadeira e sentia vergonha. não sei se devemos sentir vergonha dos nossos privilégios, até porque no caso da cor da pele é impossível abrir mão deles, mas foi o que senti.) o que mais me marcou da apresentação foi quando disseram: “você não pode esquecer que representa todas as pessoas negras, todas as pessoas cotistas ou bolsistas. tem que se dedicar em dobro, tem que mostrar serviço, tem que aguentar porrada e preconceito de professores e colegas.” as pessoas negras que estavam presentes poderiam, em breve, ser as pessoas cotistas ou bolsistas nas universidades citadas. se elas fossem mal nas aulas ou desistissem do curso, a fofoca seria “viu só, tinha que ser cotista/bolsista! não deu conta! não é inteligente o suficiente, por isso não deveria nem estar aqui em primeiro lugar!” eu sou branca e desisti da faculdade. embora tenha usado cotas sociais por ter sempre estudado em escolas públicas, esse é o tipo de informação que não está estampada na minha pele. portanto, sou simplesmente uma pessoa que largou a faculdade. quando falo que larguei a faculdade, os comentários são do tipo “ah, até steve jobs largou faculdade! você é tão inteligente, claudia, tenho certeza que foi uma boa escolha” e não do tipo “tinha que ser cotista, viu só!” sendo mulher, conheço essa representação em outras situações. se joana faz uma bobagem no trânsito: “mulher não sabe dirigir”. se joão faz uma bobagem no trânsito, "joão não sabe dirigir”. ou, pior: “joão dirige que nem mulher!” e quando a pessoa cotista vai bem na faculdade ou a mulher dirige bem? ah, aí deixamos de representar toda a classe! aí os comentários são “nossa, tá indo tão bem na faculdade, nem parece cotista” ou “nossa, dirige tão bem, nem parece mulher.” mesmo que os dados provem que costistas têm melhor desempenho na faculdade e que mulheres dirigem melhor, o discurso já está contra nós. e esta é mais uma face cruel dessa representação involuntária: se você faz parte de algum grupo oprimido, representar negativamente todas as pessoas da sua classe não é uma opção. é automático. é mais um fardo impossível de desvincular. ao tentar representar seu grupo de forma positiva, você estará reforçando as supostas qualidades do grupo opressor. sendo mulher, às vezes me pergunto por quanto tempo precisarei fazer como sugeriu melquizedeque ramos: me dedicar em dobro, mostrar serviço e aguentar porrada e preconceito. sendo privilegiada em vários outros aspectos, como na cor da pele, às vezes me pergunto por quanto tempo as pessoas que não possuem esses meus privilégios precisarão fazer o mesmo. -- foto destacada: manifestação do movimento negro pela desmilitarização da polícia. estátua de zumbi, rio de janeiro. 22/nov/13.