Líder afrocolombiano conta a trajetória de lutas do povo negro da Colômbia

José dos Santos, ativista do movimento negro colombiano, afirma que metade dos deslocados à força, por conta de guerras, são negras e negros.

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Por Dennis de Oliveira Poucos sabem que a Colômbia é o segundo país com a maior população negra da América do Sul, atrás apenas do Brasil. Os afrocolombianos se concentram principalmente na região do Pacífico e tiveram seus direitos reconhecidos somente nos anos 1990. Apesar do reconhecimento, os afrocolombianos são as principais vitimas da violência no país. José dos Santos, dirigente do PCN (Processo da Comunidade Negra), entidade do movimento negro colombiano, afirma que metade dos deslocados à força, por conta de guerras, são negras e negros. Os interesses comerciais na região do Pacífico têm intensificado esse processo de deslocamento forçado. E, segundo Santos, negras e negros que vivem nas periferias das grandes cidades para onde foram deslocados à força sofrem um “racismo mortal.” Nesta entrevista, realizada na sede do PCN em Bogotá, José dos Santos fala da luta dos afrocolombianos e aponta quais são as perspectivas, no seu entendimento, para a luta contra o racismo no seu país. Santos afirma que é preciso ir além de ações afirmativas e construir uma consciência negra, para além do tom da pele. O sr. pode se apresentar e falar um pouco da história do PCN e da luta antirracista na Colômbia? Eu sou José dos Santos, sou da coordenação nacional do PCN, uma organização de caráter nacional, com maior presença na região do Pacífico colombiano, sobretudo no Pacífico Sul, na baía de Cauca Madalena e na costa do Caribe. Nascemos em 1993, logo depois que o governo reconheceu os direitos do povo negro, através do artigo da disposição transitória da Constituição de 1991. Durante dois anos, tivemos a tarefa de consultar a população negra para discutir quais direitos deveriam ser reconhecidos pelo povo negro. Assim, a disposição transitória 55 só falava que deveria haver uma territorialidade coletiva da gente do Pacífico, mas a gente queria muito mais. Então, se constituiu uma comissão especial para discutir esses aspectos com pessoas de todo o país, com acompanhamento importante da Igreja Católica progressista e se foi aos rios, aos bairros, às localidades para perguntar a toda gente qual eram os direitos que deveriam ser reconhecidos. Como foi essa discussão com o governo? Foi muito dura. Primeiro, não se reconhecia que havia negros no país, depois que só havia negros no Pacífico, ou então os famosos, como o Zapata Oliveira, alguns intelectuais, mas não que havia comunidades negras no país. E que a população não reconhecia que havia negros e que participaram da construção deste país e que, portanto, pertencem à nacionalidade. Como se deu o processo que desencadeou as negociações com o governo? Um grupo de representantes, em torno de 21 entre homens e mulheres, levou ao governo que deveríamos ser reconhecidos como grupo étnico. Esta foi a primeira peleja. E nesta primeira discussão, o governo disse que se fôssemos reconhecidos como grupo étnico, também deveriam reconhecer os italianos, os portugueses, espanhóis que viviam neste país. Ou seja, diziam que éramos estrangeiros. Para acabar com a discussão, dizíamos que não viemos para cá por nossa livre e espontânea vontade e que a nação tinha uma dívida histórica com os negros colombianos. Esta gente negra passou por toda a construção do país, as igrejas, as obras históricas. Diante disso, afirmaram que para ser reconhecido como grupo étnico tem que ter uma língua materna. Aí, entrou outra dificuldade. A única língua materna que se mantém no país é a dos palenques, na região de Cartagena, e o criollo, em San Andres. Mas, no Pacífico, não há língua materna, pois os mestres e sacerdotes assassinaram nossas línguas. Um descendente de africano que estava nas comunas e que falava sua língua seria corrigido pelos mestres nas escolas. Por exemplo, quando se diz “suba acima” ou “desça abaixo”, os professores dizem que é um pleonasmo, mas é uma forma africana de reafirmar a ideia. São partes da língua africana. Em uma parte do país há uma erva que se chama cimarron, mas no Pacífico se chama tinjangua. Ou o ritual fúnebre de crianças aqui se chama velório, mas para nós é tigualo. Tudo isso vem de uma língua africana de matriz banto. Dizíamos ao governo que não tínhamos uma língua materna estruturada, mas havia estas falas. Inclusive, entre o pacífico norte e sul colombiano há distinções entre línguas e costumes. O que no pacífico sul chamamos de tigualo, no pacífico norte chamamos de guali. A língua africana está aí. Enfim, não há uma língua materna estruturada, mas há muitas línguas, dialetos e costumes distintos do restante da população colombiana e, portanto, deveríamos ser reconhecidos como grupo étnico. E depois disso, como foi a discussão? Eles disseram o seguinte: mostrem-nos quais são essas diferenças. Respondemos: vocês, como tratam os mortos, como se despedem dos mortos? Há uma diferença entre ritual de crianças e adultos? Para a população branca, mestiça deste país não há esta diferenciação. Para nós, sim, há esta diferenciação. Como tratamos nossas crianças, como utilizamos o nosso território etc. Mostramos tudo isso para convencê-los de que somos distintos, apesar de termos a nacionalidade colombiana. Então, isso foi parte de uma discussão a qual ganhamos e a comunidade negra foi reconhecida como um grupo étnico com suas práticas distintas de produção, práticas culturais etc. Quais são as práticas de produção da comunidade negra que vive na zona rural? Não há como comparar com os campesinos mestiços. Enquanto os campesinos pensam no individual, a comunidade negra pensa no coletivo. O uso do território negro é de uso coletivo. Quando alguém quer caçar, não há impedimento de caçar ao lado, ou se quiser pescar, tem que pescar somente em um lado, ou se vou fazer extração de minérios, tem que ser feito somente em um lado. Não, o território é de todos, e por isso, ou todos o destroem ou o preservam. Quando os pescadores brancos mestiços pescavam no rio ou no mar e pegavam todos os peixes, a comunidade negra só conseguia ter comida para hoje e amanhã. E quando isso ocorria não havia órgãos de regulamentação ambiental que regulasse o aproveitamento dos recursos. A comunidade negra tinha uma forma própria de conservação dos recursos naturais, a partir dos mitos. Ou que a academia chama de mitos. Mas, hoje, o governo regula a partir das corporações ambientais ou por decretos baixados sem negociação. Então, mostramos tudo isso ao governo, que somos distintos apesar de ter a nacionalidade colombiana. Portanto, devemos nos reconhecer como grupo étnico. Assim, o que está dizendo é que a cultura é o elemento definidor dessas identidades e das diferenças? Quando se fala em cultura, como se transmitia o conhecimento nas comunidades negras? Em algumas, se transmitia pelos contos, dos velórios, do tigualo, das festas tradicionais. É como se transmite o conhecimento. E nessa época, a nenhum jovem se ensinava a tocar marimba. Ou tocar bumbo. O jovem teria de aprender vendo e ouvindo. Porque ele era levado às festas, aos velórios, aos tigualos. Afinava ouvindo. Não se ensinava crianças e jovens a cantar. Eles tinham de aprender escutando, cantando uma navajo, que era o rito fúnebre dos mais velhos. Quando era o rito fúnebre, era cantar como a mais velha cantava e entoava a sua voz. E começava a compor, e compor era qual estribilho e quais versos iria cantar. Na festa patronal de Santa Mercedes, por exemplo, se preparava em sua cozinha o alimento, cantando e compondo. Compunha-se a partir do cotidiano, do ambiente. As crianças ficavam escutando no pátio e iam afinando e quando se ia ao velório, à festa religiosa, se identificava. Então, esta foi a primeira peleja que se ganhou do governo. E depois, qual foi a discussão? A segunda foi a territorialidade, que é o ponto essencial do artigo 55. Esse reconhecimento era de maneira individual ou coletiva. E que terras deveriam ser reconhecidas como negras? E, na transitória 55, se definiu como a Cuenca dos rios do Pacífico. E, então, nós dissemos não. A gente negra não está somente na bacia dos rios do Pacífico. Portanto, tem que ser ampliado. Podemos ter como base as regiões do Pacífico, mas ampliar para outras áreas similares que cumpram iguais condições. O governo dizia não. E essa foi outra discussão que ganhamos. Conseguimos que os territórios negros fossem reconhecidos a partir das condições similares. Que desenvolvam práticas tradicionais como a gente do Pacífico, ou que o território tenha uso coletivo ou que a produção seja similar ou que simplesmente se reconheça como comunidade negra. Essa foi a maior discussão e esteve centrada em como se queria reconhecer o território. Aí, cada vez que havia um tema de discussão, isso se trazia para as comunidades. Era 1991, o Pacífico estava incomunicável. Os representantes foram, então, conversar com suas bases e cada uma das localidades trouxe ideias distintas. Tivemos que acordar tudo isso, tamanha era a dimensão do tema. Foi um trabalho muito bonito, porque houve um verdadeiro processo de consulta prévia. Tudo foi retroalimentado pela própria comunidade A gente, sobretudo de Tumaco e de Marinho, discutiu muito isso e eu disse uma coisa: já havia uma estrada que ligava Tumaco a Pasto e algumas famílias haviam conseguido títulos individuais de terra pela Caixa Agrária. Então, essas famílias que puderam obter esses títulos já não têm mais a terra. E não as têm porque, para isso, teve que baixar para a zona urbana e quando o titulo saía, tinha uma dívida. Para que resolver dívida, a Caixa Agrária oferecia crédito, porém com a terra como garantia. Quando a gente conseguiu o crédito, já não tinha mais a terra, não poderia mais plantar milho e seus produtos e nem mais a ajuda dos vizinhos, amigos. Ou seja, não temos a cultura do crédito. A Caixa Agrária tomou as propriedades e vendeu aos grandes latifundiários. A gente de Tumaco trouxe essa experiência e, por isso, lançou essa reivindicação: nós queremos garantir a permanência e sobrevivência do povo negro em seus territórios e esses territórios são propriedade coletiva. Se forem dadas propriedades individuais à família x ou y, vai se romper a coletividade. Portanto, a maneira que o governo deveria entregar o território à comunidade negra é de caráter coletivo. Essa foi a luta mais dura. Porque o branco mestiço do governo não compreendia isso. Foi a terceira discussão ganha, a territorialidade coletiva, que é garantida, e a comunidade negra a usa de forma consuetudinária. Então, vocês tiveram três conquistas: o reconhecimento como grupo étnico e sua cultura, a ampliação do conceito de terra da comunidade para além da região do Pacífico e a titulação coletiva. E depois? Aí, veio a quarta discussão, a qual perdemos: a quem o Estado entrega o título da propriedade. A comissão, então, propôs: historicamente tem havido uma figura que os antropólogos, sociólogos e a academia têm estudado, que são os palenques – territórios livres para recriar a cultura, identidade, visão de mundo de África (que no Brasil são os quilombos). O Estado, então, deveria chamar esses territórios coletivos como palenques. Claro, isso o governo não iria aceitar. Eles saberiam quão reconhecimento histórico estariam fazendo às comunidades e sabiam que isso significava reconhecer a ação dos guerrilheiros cimarrones, que construíram territórios livres. Hoje, em pleno século XX, eles iriam reconhecer que os cimarrones estavam certos. O que se pactuou? Uma figura intermediária que se chamou de “Conselhos Comunitários”. Então, a administração dos territórios seria feita por esaes conselhos constituídos pelas comunidades que recebessem os territórios coletivos. Digo que perdemos, mas essa figura intermediária teria os mesmos propósitos que um palenque. Por isso aceitamos. Aí está o reconhecimento da territorialidade negra, que era o princípio da disposição transitória 55. No entanto, queríamos mais. O quê? Diante de tudo isso, com a comunidade negra integrada a esses territórios e conselhos comunitários, como ela vai se desenvolver? Ou gerar bem-estar social, econômico, a partir dessas terras? Então, o que se pactuou foi a constituição de uma linha de crédito específica voltada ao desenvolvimento dos povos negros. Entretanto, até agora, depois de 24 anos de luta, não se regulamentou o Fundo de Desenvolvimento da Comunidade Negra, que seria composto por cooperação nacional e internacional. Isso é o que está previsto no capítulo VII da Lei 70. As comunidades também mostraram uma preocupação: se somos proprietários de territórios com muitos recursos naturais, há de se ter um capítulo que regule isso ou que, pelo menos, sejam definidas diretrizes de como conservar isso. Qual deveria ser o uso e o manejo dos recursos do território, que passou a integrar o capítulo IV da Lei 70. Esse capítulo também não foi regulamentado. Claro, porque três ou quatro anos depois de aprovada a Lei 70, o governo quis cortar os direitos, não cumprindo, invadindo, dando permissão à exploração, enfim, impedindo o uso e o gozo desses direitos garantidos na lei. Outro problema é que nesse país há uma normatividade para recursos naturais no solo, mas há outra regulamentação para o subsolo que tem a ver com os recursos minerais. Uma parte da prática tradicional das comunidades negras refere-se à mineração. Por isso, teve que se criar outro capítulo, que é o V da Lei 70, que tem relação com os recursos mineirais, que também não foi regulamentado, por conta de interesses. As comunidades negras querem realizar suas práticas tradicionais de mineração nos territórios reconhecidos, mas é uma área em que o governo quer intervir de forma mais forte. E ainda há o Conselho Comunitário, que, à medida em que se transforma em uma autoridade no território, como se regula? Tem que ser regulamentado por um decreto. Outra coisa: como a coluna vertebral dos direitos da comunidade negra é o reconhecimento a sua identidade cultural, há também que se regulamentar iso, que está no capitulo VI da Lei 70, e que tem a ver com educação, patrimônio cultural etc. Este capítulo só foi regulamentado, em parte, sobretudo o que tem a ver com um fundo de bolsas para acesso à educação superior. Assim, o grande desafio são os direitos reconhecidos e como eles são regulamentados e aplicados. Qual foi o impacto dessa luta histórica na organização da comunidade negra na Colômbia? Em agosto de 1993, quando se promulgou a lei, pelo presidente Cesar Gaviria, todas as organizações que participaram do processo se encontraram em uma grande assembleia. E essa assembleia foi em Porto Terrara, norte do departamento de Cauca, em 9 de outubro de 1993, para definir o que fazer a partir disso. As lideranças estavam muito cansadas do processo. E o que se segue então? Algumas organizações colocavam que era o momento de participar dos processos eleitorais para a câmara de representantes. Poderíamos aspirar ao processo eleitoral. Outro conjunto de organizações disse não. Há de se continuar fortalecendo o político-organizativo, pensar como fortalecer essas organizações de base e jovens, mulheres, campesinos. E ai houve uma ruptura. Havia o grupo que defendia a prioridade na participação político-eleitoral e o que defendia o politico-organizativo. E fez-se um pacto nessa assembleia. Quem mais pensava na perspectiva político-eleitoral eram as organizações de Chocó e algumas outras. As organizações que não estavam priorizando o político-eleitoral formaram o PCN (Procesos de Comunidad Negra). O PCN foi articulado a partir desse processo das comunidades negras, dos campesinos, com apoio dos acadêmicos e da Igreja. O PCN existia antes? Não, o PCN como PCN surge em 1993. Antes, havia organizações por território. Em Chocó, havia a Acia – Associação Campesina. Havia também organizações de professores negros, jovens negros, que foram importantes nesse processo de construção da regulamentação do artigo transitório 55. Por exemplo, em Buenaventura, teve de se construir organizações, que aglutinavam os negros e negras. O processo foi muito interessante, porque, de um lado ajudou a regulamentar o artigo transitório 55, e por outro, auxiliou na organização da população negra. Em Buenvantura, se criaram organizações, que deram origem aos conselhos comunitários. Se não tivessem essas organizações de base, não haveria base para a constituição dos conselhos comunitários. E isso ocorreu em várias localidades. Organizações de professores, de cultura, dependendo da situação. Em algumas localidades se centrou mais em organizações culturais. Em outras, comunidades de bairro. Houve muita influência da Igreja Católica progressista. Em Buenaventura, da pastoral social, da teologia da libertação. De vários sacerdotes comprometidos. Esse processo se deve a muitos sacerdotes. Inclusive, que lhes custou a vida, como foi o caso da Irmã Yolanda Cerón, em Tumaco. E o padre Guilherme Correa, que teve que fugir de Tumaco, ameaçado pelos paramilitares. Havia distintos processos organizativos, incipientes e mais articulados. Acadêmicos, que faziam parte da comissão especial. Quando eu falo do reconhecimento como grupo étnico, foi fundamental o papel dos acadêmicos para ajudar a elucidar o que os políticos não sabiam. Quando esses negros estão falando disso, há que se ter referência teórica, exigiam os governantes, e os acadêmicos foram importantes nisso, principalmente, os antropólogos e sociólogos que participaram , tanto do lado do governo, como das comunidades. Tivemos a assessoria de alguns intelectuais. Em Chocó, por exemplo, tivemos o papel importante da Obapo, organizações dos bairros populares, com forte participação de mulheres, apoio da Igreja, mas com a presença marcante de mulheres do povo. Foi um momento em que o Pacífico começou a se mostrar como uma região estratégica de inversão capitalista. O projeto Bio Pacífico, por exemplo. Entre agosto de 1993 e outubro de 1995, se passaram muitas coisas. A comunidade negra e, sobretudo a comissão especial, tinham realizado sua tarefa. O artigo transitório 55 foi regulamentado. O que fazer? Continuar ou a tarefa já havia se esgotado? Funcionários de Incora (Instituto Colombiano de Reforma Agrária) começam a promover e eleger pessoas para os conselhos comunitários, a partir dos seus interesses político-eleitorais. Isso fez as pessoas refletirem: se a gente fez todo esse processo, como deixar para o Estado ficar com o comando de todo o processo posterior? Então, é de onde surge a necessidade de se regulamentar o capítulo III da Lei 70. E nisso, institucionalmente, havia uma coisa chamada PNR (Plano Nacional de Rehabilitación). O governo tinha um acordo com o Banco Mundial, seguramente, para se pensar o Pacífico como zona de exploração. E os recursos deveriam ser usados para a capacitação e implementação do capítulo III da Lei 70. Mas não se deveria deixar a cargo da institucionalidade o manejo dos recursos e, sim, com participação das comunidades. Então, criou-se o Comitê Regional, constituído por PNR, Incora, Ministério de Meio Ambiente e delegados da comunidade. Uma junta diretiva, em que as propostas que as comunidades entregavam, eram analisadas e postas em prática. Tudo era feito com a Incora por conta da capacitação. No mesmo momento em que se estava se constituindo os conselhos comunitários, estava se implementando os processos de capacitação. Foi um processo de formação. Então, sai o Decreto que regulamenta o capítulo III da Lei. O Banco Mundial manda recursos para o governo que, inicialmente, pretendia administrá-los pelo PNR e Incora, e passa para o processo do Comitê Regional. Enquanto estávamos avançando, ou seja, cada organização tinha que elaborar um projeto, dizendo em que consistia, o que ia fazer no território, seja um processo de tratamento da terra, formação de lideranças etc. E colocava as demandas de recursos. No fim, o total de recursos pedidos era maior que o total do programa. O Comitê Regional que arbitrava isso não era o governo e, sim, esse comitê participativo. Haveria uma negociação de ajuste dos recursos para que todos os projetos fossem financiados. As comunidades definiam as prioridades. Por tudo o que estava passando Chocó, todo o movimento negro decidiu que o primeiro título coletivo deveria ser da Acia, mas todos entraram na fila e todos foram contemplados com os ajustes. Entre 1994 e 1998, cria-se o programa Bio Pacífico. O governo entende que parte dos recursos do Banco Mundial e do BID era para investigações sobre o Pacífico. Mas como há organizações negras e também indígenas, há que se negociar isso. E, então, iniciou um processo de negociação e vimos uma oportunidade de potencializar as titulações. A lei que criou o instituto ambiental de estudos ia além desse fundo. Mas eles não estiveram na primeira fase de constituição dos conselhos comunitários e, sim, na segunda fase, de fortalecimento, mas através da perspectiva ambiental. Se as comunidades tivessem dimensionado isso, trabalharíamos para regulamentar o capítulo IV da lei 70, que tem a ver com a questão ambiental. Mas não dimensionamos isso. Então o que você está dizendo é que todas as iniciativas de preservação ambiental vieram de fora? Inclusive, os recursos para estudo e pesquisas? Sim. Os recursos vieram de fora com o objetivo de conhecer a realidade para os interesses do capital. Daí, surge o Bio Pacífico, para retirar as informações para os seus interesses. Aí, está a linha de atuação de quem convoca os conselhos comunitários. A institucionalidade queria convocar os conselhos. No decreto que regulamenta, é estabelecido que quem convoca eram as organizações reconhecidas pela comunidade. Daí, a importância da construção das organizações. O movimento negro, num primeiro momento, obteve um grande reconhecimento, e, num segundo momento, teve constituído pelos conselhos comunitários, uma autoridade própria sobre os seus territórios. Qual era a consequência? Estávamos tirando todo o território do Pacifico do mercado. Isso o que havíamos feito. Esse território do Pacífico é dos grupos étnicos, dos negros e dos indígenas. Com isso, não haveria nenhum outro tipo de titulação na região do Pacífico. Então, o que fizemos e não dimensionamos foi que retiramos do mercado todo o território do Pacífico. E quando há muitos interesses, quando começamos a receber os primeiros títulos coletivos, muitos já não estavam, porque já estavam chegando os paramilitares mandados por todos esses grupos poderosos. Então, as comunidades tinham fugido por conta da violência e massacres. Somente uma comunidade que resistiu foi o que constituiu o Conselho Maior de Acia-Cocomacia, que foi um território muito grande, de 800 hectares. O conselho comunitário teve uma certa visibilidade e cooperação pelo apoio da Igreja progressista. O primeiro representante legal de um conselho comunitário foi assassinado em 1998. Não conseguimos dimensionar toda a revolução que estávamos fazendo. Quais os interesses que estávamos atingindo? Primeiro, o das empresas de cultivo de palmeiras e produção de óleo de palma no alto das montanhas. Certo dia houve um censo populacional e o conselheiro estava junto com a equipe do censo e mandaram matá-lo. Qual o nome do conselheiro assassinado? Francisco Urtado Cabezas, primeiro representante legal do Conselho Comunitário de Altamira e Fronteiras. Em que ano foi? Em 1998. E em 1998, 1999 e 2000 já estavam os paramilitares em Tumaco. E já haviam expulso de lá o padre German Correa. A irmã Yolanda Ceron disse que continuaria resistindo ao lado do povo e é assassinada. E, depois desse assassinato, vários dirigentes fogem do território. Então, sintetizando o assunto: em 1993, houve o reconhecimento de um direito, mas a comunidade negra até hoje não tem gozado e desfrutado desse direito. Porque tem sido impedida de distintas maneiras com a presença dos paramilitares, da incursão de megaprojetos, com a incursão de empresas estrangeiras, com a exploração madeireira e mineira e com o retrocesso das normatividades, que vão fazendo retroceder os direitos do povo negro. Assim posso resumir os traços da nossa luta. Mas, sem dúvida, aí estão os direitos e temos que fazer o uso deles. No entanto, se me perguntam sobre o conflito armado de 1993 para cá, como a comunidade negra foi afetada, eu respondo: gravíssimo. E gravíssimo, porque seguramente não foi unicamente o governo querendo controlar os territórios, também houve uma intencionalidade da insurgência de andar, transitar e controlar os territórios. A afetação também foi por isso. Claro, a gente negra, indígena, campesina integraram a insurgência, mas afetaram porque o uso e gozo dos direitos foi afetado, pois havia a presença da insurgência e o governo justifica a presença deles para fazer o que fez. Hoje, há outra intencionalidade da insurgência que entrega as armas e não fortalece os governos próprios das comunidades. Não é isso. Não poderia estar especulando, mas digo que não se entende a luta étnica. E não se entende a reivindicação dos grupos étnicos. Começam a constituir organizações paralelas às próprias organizações naturais da comunidade. Querem ser autoridades por cima das autoridades comunitárias. Enfim, tudo está aí, e deverá, daqui a dez, anos ser estudado, após o fim do conflito armado com as FARC e ELN. Mais grave que isso, porque, no acordo de paz, o capítulo étnico foi tardio e foi a mesma batalha que a constituição. Pior, porque indígenas e negros foram os últimos a elaborar isso. Muito superficial, inclusive. Sim, os negros e indígenas que lutaram pelos direitos pediram pelo menos salvaguardas de que esses direitos não deveriam retroceder. Mas o que se percebe é que sequer a salvaguarda está funcionando. Os interesses são muitos, porque os acordos envolvem os interesses capitalistas do governo e, no lado da insurgência, que surgiu inicialmente como um exército de defesa dos direitos do povo e que hoje não está pensando nisso, mas, sim, em seus próprios interesses. Eu estou apenas especulando, mas vejo que não se conversa com as comunidades. Lembro que foi a FARC que assassinou, em agosto de 2015, Genaro Garcia, segundo representante do conselho comunitário de Altamira. Muitas vezes a FARC se coloca como uma insurgência contra o governo de direita, mas frequentemente essa insurgência não leva em conta os direitos dos povos indígenas e negros. Sim, só levam em conta como mão de obra para o seu exército (risos). Houve um deslocamento muito grande de negros com o conflito armado e estes estão nas periferias das grandes cidades. Como está a situação da população negra nas periferias hoje? O censo de 2005 da Colômbia concluiu que negros são 10,4%, o que dá 4,2 milhões de pessoas. Se comparar este censo com a quantidade de negros retirada à força dos territórios, digo que toda a comunidade negra está deslocada. Há estudo que mostra que a quantidade de pessoas deslocadas no país está em torno de 7 a 8 milhões de pessoas. Nós, da comunidade negra, dizemos que pelo menos a metade destes são negros. Não há instrumentos que podem definir claramente o cenário. Os registros de população deslocada não têm o item de reconhecimento étnicorracial. Mas, pelas regiões em que vieram, há que se inferir que são negros e indígenas. Essa é a primeira dificuldade. A segunda é que, mesmo com o reconhecimento dos direitos da população negra em 1993, o racismo no país não tem mudado, tem se aprofundado. Há uma tripla discrminação, se a pessoa for negra, deslocada e se ainda for mulher. Tudo isso afeta a população negra. Em Cáli, a grande maioria da população é negra, mas se sente a discriminação. Esse deslocamento forçado feito pelo conflito armado, pelo conflito ambiental, miserabilidade e outros tem impactado a cidade de Cáli. Mas onde se vê mais racismo é em Medellin, Bogotá e Cartagena. Qual é a discussão que tem havido aqui em Bogotá, por exemplo? Onde está a maioria dos negros? Em Ciudad Bolivar, Suba, Bossa, São Cristobal. A discriminação é mortal. A gente negra que vive nessa localidade tem sido assassinada e vítima de outras violências. Há uma cancha de futebol em que os negros não podiam ir. Esse distrito tem um escritório étnico e todo o dia chegam casos de discriminação. Em Suba, a discriminação é mortal. Há um confronto de realidades. A grande maioria da comunidade negra vem de espaços abertos e é obrigada a ficar em espaços fechados. Alguns vivem de portas abertas e, então, sofrem discriminação, pois não tem práticas adequadas de viver em cidade. Daí, surgem os estigmas de que todo negro é ladrão, bandido etc. Essa é uma parte da realidade que há. No Brasil, vivemos algo muito semelhante. Tivemos, principalmente a partir de 1995 com o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em que se reconheceu o racismo oficialmente, e em 2001, após a Conferência de Durban, um avanço na discussão das ações afirmativas. Porém, o racismo continua e isso faz pensar se a luta institucional é suficiente. Muitas vezes, as conquistas institucionais não mudam o preconceito e o racismo. O que pensa disso? É como o PCN se diferencia de outras organizações. Para algumas organizações temos que ter ações afirmativas e ação afirmativa é – se temos um ministério da educação, temos que ter negros, e assim por diante. Se a Avianca contrata gente, tem que ter negros e um negro tem que ser atendido por uma pessoa negra. Temos uma lei aqui que define e tipifica o racismo. E pergunto, qual a aplicabilidade dessa lei? Por exemplo, quando te discriminam por querer entrar em uma discoteca. Não te deixam por ser negro, e pergunto quanta gente está presa por isso? Ninguém. A lei está aí e pode ser uma politica pública interessante. Mas o mais alto grau de discriminação que se vive aqui em Bogotá é com a polícia. Se eles veem dois negros, param e pedem identificação. E se alguém reclamar, alegam desacato à autoridade. Eu digo sim, há que se realizar a luta institucional, tem que se garantir a aplicação dos direitos e para isso é necessário uma reeducação aos funcionários públicos, por exemplo, pois são os que devem garantir a aplicação dessas normatividades. Há que se ter uma reeducação dos operadores de Justiça neste país, para que aprendam, identificam o que um negro está dizendo. Nós no Brasil chamamos isso de “racismo institucional”. Tal e qual, é isso mesmo. Mas, como disse, nos distanciamos de outras organizações porque entendemos que não basta ter nos postos e nos cargos gente negra. Porque aí não é cor de pele, mas, sim, qual grau de consciência esse negro ou essa negra tem. Porque se eles não têm consciência, esse negro e negra prejudicam o próprio negro. Aí, a lei de cotas, de igualdade, de ações afirmativas tem que ser repensada, porque um negro sem consciência pode ser igual e perigoso a um branco mestiço. E pode ser mais favorável ao negro um branco mestiço com consciência. Assim, ser negro não é somente a cor da pele. É preciso assumir a identidade negra. Assim como muitos brancos mestiços podem ter uma consciência negra. Eu quero perguntar a respeito disso. Como pensam os negros que não participaram desse processo de reconhecimento da identidade, porque foram de outras gerações ou que estavam em outras localidades e que são permeados por essa perspectiva folclórica do ser negro? E quando se diz afrocolombiano, está se colocando uma outra perspectiva identitária, como fica tudo isso? Havia uma discussão sobre isso em 2002. Algumas organizações afirmavam, naquele momento, que se nos chamássemos de negros estávamos nos autodiscriminando. E eles podem ter sua razão. Mas há a argumentação de outras organizações, que dizem o seguinte: como nasce a discriminação, contra negros ou afrocolombianos? Respondemos: contra negros, pela cor da pele. Por outro lado, a discussão de negros, afrocolombianos e afrodescendentes, quem implantou foram os acadêmicos e não a comunidade negra. E colocaram essa discussão, porque temos muita gente negra que nasceu, se criou e vai morrer nas cidades, distantes dos espaços de construção da consciência negra. A discriminação, a segregação e o racismo querem ocultar o racismo contra negros. Por isso, sentir-se como afrocolombianos ou afrodescendentes é como minimizar a discriminação. Sim, porque se todos os dias os meios de comunicação dizem que ser negro é mau, ser negro é ser criminoso, ser satânico... Isso vai sedimentando e se, em sua casa, seu filho vai à escola no meio de brancos mestiços e é segregado, quando chega a 21 anos, não quer ser negro e reivindica a identidade de afrocolombiano ou afrodescendente. E essa questão deve criar dificuldades para o movimento negro!? Não é essa dificuldade. A dificuldade é a conceituação da academia de querer construir novas categorias. O reconhecimento não é a principal dificuldade. Essa discussão está saldada, porque na mesma normatividade está a relação campo-cidade. Há uma tentativa de limitar o reconhecimento somente pela localidade e aí a gente que vive na cidade tem que reconhecer isso. Há uma intencionalidade de reconhecer o negro somente no Pacífico. Quando a institucionalidade vai ao Caribe e aponta que os negros não estão reconhecidos, e isso é falso, porque a lei é para todos os negros. A lei não é apenas para as pessoas do Pacífico. A institucionalidade quer fracionar a população negra. Compreendo, e pergunto isso por conta da sua afirmação de que não é apenas a cor da pele que importa e, sim, a consciência. Quais os fatores que determinam o pertencimento negro? Por exemplo, os mestiços? Há um problema concreto de dificuldade de sabermos nossa ancestralidade que chega, no máximo, a duas ou três gerações. Aí, temos o exemplo dos negros nascidos nas cidades que podem ser úteis para a discussão. Vai depender como você é educado em sua casa. Se em sua família você foi educado com as raízes, você vai ao colégio, à universidade, com toda a formação cimentada. Se em sua casa isso não ocorre... Por exemplo, você tem um pai negro e uma mãe indígena. O que você aprendeu? As tradições indígenas ou negras? O mesmo se dá com os brancos mestiços. Independentemente de ter avô, avó negro ou branco. O que importa é o reconhecimento e suas raízes. Por isso, digo que a questão não é de pele, mas de como você se assume. Porque em todo esse cenário de discriminação, nos livros escolares, a responsabilidade está no sistema. Mas há muitos negros e negras que se criaram fora dessas regiões das tradições negras, mas têm uma relação com as tradições e, portanto, são negras também. E também não podemos dizer que uma pessoa negra que não tenha integralmente as práticas tradicionais não seja negra, pois o reconhecimento é um processo. Ele pode não tocar marimba, não comer pescado, ser da cidade, mas pode conhecer e valorizar tudo isso. Por isso, uma coisa que defendemos é o autorreconhecimento. Você pode ser um mestiço e te ensinaram em casa a ser um negro. Não é uma pessoa de fora que vai definir o seu pertencimento. Parte de ti. E isso passou no censo de 2005. Temos um antropólogo que faz parte do PCN que se reconhece como negro pela sua ancestralidade. Ele nos representa em vários espaços institucionais e muitos estranham porque ele não tem a pele negra. Mas insistimos: o que importa não é a cor da pele e, sim, o seu autorreconhecimento. E quanto à fragmentação dos grupos, que é um problema? Por isso, o PCN se diferencia das outras organizações, porque o que importa para nós é o autorreconhecimento e isso gera muitos conflitos. Por exemplo, dizemos que pode haver muitos negros de pele que podem ser mais racistas que muitos brancos mestiços. O PCN é contra as ações afirmativas, cotas? Não, a lei 70 é uma ação afirmativa. Trabalhamos a favor das ações afirmativas, mas de outra forma que outras organizações. Uma ação afirmativa, uma lei de cotas, por exemplo, será que a garantia de uma presença mínima de mulheres resolve o machismo, assim como para negros? O que me resolve para o racismo ter três ou quatro negros nos espaços de governos? Por exemplo, no governo Uribe, o que resolveu o racismo ter negros no governo? Muitos dizem que foi significativo ter isso, porque pelo menos foi um governo que investiu no campo da cultura. Sim, mas veja isso. Hoje, o ministro do meio ambiente é uma pessoa negra. O que isso ajuda a diminuir a segregação e racismo, pode contribuir para que a institucionalidade diga que estamos dando espaço. Ambientalmente, os territórios que os negros habitam podem se fortalecer enfrentando os recursos do capital? Só se tiverem também recursos. Em lugar de contribuir, pode até retroceder. Ele pode querer fazer muitas coisas mas não foi lhe dada condições. Mas isso é muito complicado, porque a institucionalidade tem os seus próprios interesses. Sim, se eu como negro chego à institucionalidade, o que tenho que fazer é lutar para mudar toda essa institucionalidade. Assim como pode haver muitos operadores de justiça negros e indígenas e são engolidos por essa máquina. Mas, se temos, por exemplo, cotas no ensino superior, teremos mais negros acadêmicos, antropólogos, operadores de direito. Iss não é importante para o movimento negro? Sim, ajuda. Mas isso tem que estar articulado com a ideia: vamos ajudar a transformar a realidade. Estamos avaliando o Fundo de Bolsas para Afrodescendentes. Muitos dos jovens passaram por isso e para quem estão servindo hoje? O povo negro ou o grande capital? Porque estão sendo cooptados. Por isso, a questão da consciência é fundamental. Muitas pessoas da periferia e do campo querem sair para estudar. Qual é o compromisso que essa pessoa tem que ter com suas comunidades? Vai sair e retornar para contribuir com sua comunidade ou vai sair para uma grande cidade não ajudando o movimento? É esta a discussão. Porque muitos saem e não regressam e não ajudam a contribuir e é complicado, porque saíram por uma conquista do movimento. Por que então tirar pessoas que podem até se transformar em inimigo do movimento? Isto é uma questão ideológica não? Sim, também. Porque para ter acesso a essa bolsa, o jovem negro ou negra deve apresentar um projeto comunitário. E, nas férias, o estudante bolsista deve fazer um trabalho comunitário junto à organização que o está avaliando e é essa organização que deve certificar o trabalho para que, no semestre seguinte, ele possa continuar com a bolsa. Mas o que ocorre é que tudo tem corrupção, muitas organizações cedem a pressão e atestam os relatórios. Isso depende de ideologia e do compromisso político que tenha. Por isso, não somos contra as ações afirmativas, mas terão que ser construídas negociadas com os movimentos sociais para que eles possam amarrá-las. Eu digo que essas ações afirmativas não estão a serviço do movimento negro, estão a serviço dos partidos políticos e de outras organizações.