Choques, carnes fracas e antirracismo - tudo a ver

Escrito en BLOGS el
[embed]https://youtu.be/rMyugPWHP8A[/embed]   Naomy Klein, na obra The Shock Doctrine: The rise of Disaster Capitalism ("A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre - disponível para download aqui) afirma que a implantação do modelo institucional do capitalismo neoliberal se dá pelo que ela chama "doutrinha do choque", em que um processo que implica na suspensão da normalidade política (como o golpe parlamentar de agosto de 2016 no Brasil), aproveitamento da instabilidade política para impor a agenda neoliberal a partir da imposição de várias pautas ao mesmo tempo (desorientando as oposições e os movimentos sociais de resistência) e, finalmente, reprimindo violentamente as manifestações que eventualmente ocorram. Esta reflexão de Klein ajuda a entender o atual processo político no Brasil. O golpe de agosto de 2016 desorientou os movimentos sociais e a esquerda brasileira, em grande parte por conta da sua acomodação institucional com a sua presença no governo por um tempo significativo. O desmonte de qualquer anteparo institucional foi construído com o deslocamento do eixo do poder para o Judiciário, feito com o ativismo dos membros deste aparelho que não tem controle social, com a desqualificação dos demais poderes (em particular o Legislativo) e o discurso moralista da mídia hegemônica. Assim, construiu-se uma base social suficiente para conceder poderes autoritários para certas fatias do Judiciário que se sentem a vontade para acusar com base em convicções e não provas (caso do powerpoint contra o presidente Lula), cercear a liberdade de expressão e até desrespeitar a norma constitucional do sigilo da fonte (caso da condução coercitiva determinada pelo juiz Sérgio Moro ao blogueiro Eduardo Guimarães) e a claríssima antecipação de julgamento nos casos da Lava-Jato que envolve o presidente Lula feita em várias entrevistas dos membros do Ministério Público e mesmo do juiz Sérgio Moro à mídia. Nesta desorganização institucional em que os princípios básicos dos direitos civis são desrespeitados ou relativizados em nome de um "bem maior" (o "combate à corrupção"), vão se impondo medidas rápidas de desmonte de direitos sociais e adequação do Estado brasileiro ao modelo neoliberal: emenda constitucional que congela os gastos públicos, reforma da Previdência, reforma trabalhista, ajuste fiscal nos estados, desmonte das universidades públicas, controle ideológico dos profissionais da educação (com o avanço da proposta da Escola Sem Partido). E, paralelo a isto, a imposição de um projeto de nação que se adéqua ao lugar de mero entreposto de produtos e processos importados, hegemonia do capital rentista e livre fluxo dos capitais. É aqui que se encontra todos os processos citados anteriormente e a Operação Carne Fraca, realizada recentemente pela Polícia Federal. Luis Nassif, em brilhante artigo, mostra como esta operação foi produto das disputas internas da PF (clique aqui para ler). E que tais disputas internas decorrem também da excessiva autonomia que esta corporação adquiriu com este deslocamento do eixo do poder institucional para a dimensão judiciária, produto, inclusive, de erros dos governos Lula e Dilma. Mas este deslocamento institucional não ocorre a toa e está de acordo com a proposta política ora em curso. Destruir segmentos econômicos que estavam conquistando mercado internacional, como o da produção de carne, as empreiteiras, o setor petrolífero, entre outros, vai ao encontro desta adequação ao modelo neoliberal que, em outras palavras, significa cristalizar os lugares de cada nação na divisão internacional do trabalho: os centros produtores de altíssima tecnologia, a parte da produção manufaturada que importa produtos e processos dos centros hegemônicos e os lugares de fornecimento de matéria prima. Este ordenamento concentra riquezas e poder. Não foi elaborado exatamente agora, mas vem desde a colonização, conforme bem demonstra o pensador Annibal Quijano. E se expressa ideologicamente pela naturalização destas divisões por meio da imposição da categoria "raça" como elemento determinante. (Ver em Colonialidade e poder: eurocentrismo e América Latina, disponível aqui). Independente dos resultados e impactos econômicos, o que é importante reter é que todas estas medidas se inserem em uma grande narrativa de destruição de qualquer possibilidade de soberania nacional e do caminho único de subordinação a este sistema. Assim, não é a toa que permeiam entre os apoiadores deste modelo discursos que generalizam negativamente a população brasileira no geral e os mais sectários, os segmentos mais oprimidos, como negras e negros, indígenas, mulheres. Ao mesmo tempo, pílulas de pseudoilustração são expressas pontualmente pelos integrantes do círculo de poder (como as menções ao Manifesto Comunista de "Marx e Hegel" dos procuradores de São Paulo no pedido de prisão de Lula e a obsessão do juiz Sérgio Moro de propagandear que vai se "qualificar nos Estados Unidos"). Com esta narrativa se construindo sistemicamente nesta diversidade de ações, o poder instituído se sente a vontade para impor a nova Lei dos Sexagenários, reprimir manifestações, exterminar negras e negros, dar guarida a ações como a que tirou a vida do menino no Habib's, prender blogueiro que ousa criticar, entre outros. É isto que está em jogo no momento: como diz Naomi Klein, a imposição do capitalismo do desastre.