Há mais coisas na periferia do que supõe nossa vã filosofia

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Em determinados momentos fico impressionado com a superficialidade de certas análises políticas sobre a população da periferia feita por intelectuais, analistas, “experts” e até lideranças de movimentos sociais, inclusive o movimento negro. Primeiro, partiram do pressuposto que o fato dos governos Lula e Dilma terem possibilitado uma ascensão social recorde a estas populações que “automaticamente” elas iriam às ruas defender a presidenta do golpe. Não foi bem assim. Depois que estas populações dariam sua resposta nas eleições municipais de outubro do ano passado. A coisa foi pior. Ouvi pessoas dizendo que a população iria as ruas em defesa do seu “voto” – “votaram em Dilma, no programa da Dilma e não aceitariam o golpe para impor um programa que não passou pelo crivo das urnas”. (nem vou dizer aqui que a presidenta Dilma implantou no início do seu governo um programa econômico bem distinto do que prometeu nas eleições, o que já configuraria um golpe na vontade popular, mas deixa para lá) Aí partem para dizer que o povo é manipulado pela Rede Globo, pela mídia hegemônica, entre outros. Como se nunca fossem antes, só agora! A coisa não é simples assim, companheiros e companheiras! Como dizia o titio Marx, “o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações” (o grifo é meu). As interpretações da pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, do PT, nas periferias de São Paulo, vão nesta linha. Joel Pinheiro da Fonseca, animadíssimo, proclama em artigo publicado no portal UOL: “A periferia é liberal!” E conclui que existe um “abismo” entre a ideologia da esquerda nacional, reduto de “acadêmicos e militantes”, e a visão de mundo da periferia. No campo mais à esquerda, a pesquisa é interpretada como uma demonstração da incorporação das ideologias conservadoras por parte da periferia, muito em função da ação da mídia hegemônica. E ouvi de militantes do movimento negro, da “falta de politização da periferia por parte do PT” (evidente que quem falou isto são militantes que não são do PT, pois virou moda a tal autocrítica da esquerda ser sinônimo de malhar o PT como se este partido fosse o centro de todos os males da esquerda brasileira). No jornal voltado a empresários, Valor Econômico, encontrei, surpreendentemente, uma análise mais equilibrada. Intitulada “Direita ou esquerda, o que pensam os pobres?”, Lauro Gonzalez e Maurício Prado apontam que “as visões extremadas de ambos os lados parecem ignorar os múltiplos perfis das classes CDE e tendem a acreditar nos pobres como uma espécie de bloco homogêneo de ideias, valores e preferências.” Os autores pegam um exemplo específico: o desejo de ser empreendedor, interpretado como um “desejo liberal”. Ora, apenas 20% da população pesquisada demonstrou este desejo. E há, nestes segmentos sociais, pessoas que não querem ser empreendedores, desejam um bom emprego com boa remuneração. Além disto, há que se perguntar até que ponto este desejo de ser “empreendedor” não aparece como uma alternativa a uma rotina estressante de trabalho assalariado, baixos salários, assédio moral, etc. E com ameaça de perda de direitos com a reforma trabalhista proposta pelo governo. Mesmo assim, não é uma unanimidade. É uma parcela significativa, sim, mas não a sua totalidade. O que os autores chamam a atenção é que a periferia não é um bloco homogêneo. É tão diverso e complexo como qualquer outro segmento social ou espaço territorial. Entretanto, o afastamento de muitos militantes, de analistas da mídia, intelectuais, etc. deste espaço territorial os leva a explicar a periferia com base em estigmas. Em reducionismos. E usam resultados estatísticos, que são apenas sinalizações, como fundamentos para os seus argumentos. E talvez o maior problema disto é interpretar determinadas atitudes a luz dos sentidos de outros segmentos sociais. Como é o caso, também apontado no artigo do jornal “Valor Econômico”, de colocar filhos em escolas particulares. Será isso um “desejo liberal de escolher o mercado” ou a alternativa que se apresenta diante do sucateamento da escola pública (expresso em falta de aulas, de professores, violência, etc)? Acrescento ainda outras coisas. Ver televisão é uma rendição à sedução da mídia hegemônica ou a alternativa de lazer que mais se encaixa em uma pessoa cuja rotina é gastar mais de 12 horas entre trabalho e deslocamentos para o trabalho? Sociabilidade capitalista O que está em jogo no cotidiano da população em geral, em particular da periferia, é como sobreviver dentro dos padrões de sociabilidade capitalista. As alternativas são várias. Os governos do PT e aliados ampliaram o leque de alternativas por conta das políticas públicas. Mas ampliaram dentro dos padrões de sociabilidade capitalista. Ações afirmativas (inclusive cotas raciais) são medidas de enfrentamento do racismo dentro dos padrões capitalistas. Achar que isto vai desenvolver uma consciência revolucionária entre os beneficiários é pura ilusão. Amplia as oportunidades. Mas dentro dos padrões capitalistas. Os beneficiários tenderão a pensar dentro do espírito capitalista, mesmo sendo negras, negros e pobres. A tal “geração tombamento” é uma resposta capitalista ao racismo. Contestam a desigualdade racial pela interdição ao acesso ao mercado de consumo de bens. Exigem o direito de consumir. O empoderamento pela estética e pela visibilidade é o direito de participar do universo narcísico-hedonista do consumismo. Não é à toa que a grande referência do movimento negro contemporâneo são os resultados positivos das ações afirmativas nos Estados Unidos.  Intelectuais afro-estadunidenses são as mais lidas, os mais lidos. As mais conhecidas, os mais conhecidos. Tudo isto não é condenável. Mais que justo lutar pelo acesso aos bens que se produz. Principalmente em um país marcado pelas brutais desigualdades sociais e raciais como o Brasil. Uma esquerda que ascende ao poder pelas vias institucionais tende a administrar uma máquina de Estado dentro dos padrões capitalistas. Não houve mudanças significativas nos arranjos institucionais que apontasse para a construção de novos padrões de sociabilidade. Por isto, os resultados da pesquisa da Perseu Abramo não são surpreendentes. Mas, como diria Lénin, o que fazer? Ficar condenando todo este processo com um discurso principista, de que não valeu nada, não muda nada. Pior: é até elitista pois considera injusto que as pessoas da periferia tenham acesso aos bens de consumo. Também ficar achando que tudo foi uma maravilha e a culpa atual é só da Globo e das igrejas neopentecostais, também pouco auxilia. A Globo e as igrejas continuarão a existir. E a preencher o tempo livre destas pessoas. A grande questão é: como articular a consolidação destes direitos dentro dos padrões de sociabilidade capitalista com a construção de outros padrões de sociabilidade e de outra sociedade? É interessante que em várias experiências na própria periferia se percebe tentativas que vão neste sentido. Desde as experiências de produção colaborativa e em rede, de coletivos, de construção de arranjos produtivos locais na ação cultural, produção de mídias próprias,... Experiências ainda minoritárias, mas que já brotam tendo como protagonistas muitos jovens que aproveitaram estas novas oportunidades geradas pelas políticas públicas. Não são pessoas alienadas pela Globo e nem que aceitam se submeter a rotina estafante de trabalho ou ainda de meramente participar do mercado hedonista-narcísico de consumo. Mas tampouco que acham que a única alternativa a tudo isto é participar de manifestações na Avenida Paulista. Pausa. Conversando com um colega meu de esquerda, em um ato político de defesa das cotas raciais na pós graduação, concluímos: “como são chatos e demorados estes atos em que todos falam quase que a mesma coisa e brigam para ter espaço no palanque e na mesa”. Alguém já pensou se uma galera cansada da rotina de trabalho de mais de doze horas, preocupada com a sobrevivência diária, está com energia de participar disto? Falo isto sem ter a resposta direta para isto e sem querer condenar as manifestações de rua, elas são necessárias. Mas apenas para nos provocar – será que não estamos vendo a periferia com o espelho voltado para nós mesmos? Foto: UFRGS