Negras e negros candidatos, plataforma preta e gestão com centralidade periférica

"O que defendo é um modelo de gestão que tenha uma centralidade periférica como forma de enfrentar essa dura realidade que vivemos", diz Dennis de Oliveira, em novo artigo do blog Quilombo

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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O cenário das disputas internas nos partidos para escolha das candidaturas que irão participar das eleições municipais deste ano começou com um novo componente: militantes negras e negros nos partidos de esquerda reivindicam maior protagonismo nessa disputa. Se há muito tempo o movimento negro pautou a importância da esquerda levar em conta a pauta antirracista, com algumas conquistas importantes particularmente na esfera institucional, o momento atual é pautado pela exigência dos partidos de esquerda terem candidaturas negras, tanto para cargos executivos como no legislativo. A situação de maior visibilidade nesta disputa é Salvador, no Partido dos Trabalhadores. A socióloga Vilma Reis se lançou pré-candidata, com apoio de várias organizações do movimento negro. Em encontros do PT, militantes bradavam “Queremos Ela”. A argumentação é forte: como pode uma cidade com cerca de 80% da sua população composta por negras e negros não ter uma prefeita negra. Fabya Reis, outra importante liderança negra do PT, ex-secretária de promoção da igualdade racial, também se lançou candidata. E neste embate sobrou a declaração do ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, também pré-candidato, dizendo que esta discussão não é importante. O Partido Comunista do Brasil lançou como pré-candidata à deputada estadual Olivia Santana, também militante do movimento negro. E, em São Paulo, uma articulação liderada pela Nova Frente Negra Brasileira, Rede Quilombação e Frente Favela Brasil discute a participação negra nas eleições municipais. Inicialmente, se pensou em um nome para discutir o Executivo. Depois, avançou-se para discutir uma plataforma preta. Neste ínterim, foram sendo lançados vários nomes como pré-candidatas(os) aos cargos legislativos no PSOL, PT, PCdoB, PDT. O grande dilema que se coloca neste movimento é: como articulá-lo com as necessidades da população preta da periferia, submetida a uma intensificação da violência, do desemprego e subemprego, do aumento da miséria e das carências sociais? A precarização do trabalho atinge em cheio esta população, que encontra formas de subsistência se submetendo a jornadas de 14 a 15 horas por dia, seis dias por semana, com rendimentos médios inferiores a dois salários mínimos e sem qualquer direito trabalhista ou previdenciário garantido. Meninos carregam encomendas de bicicleta, jovens se aventuram no trânsito como motoboys e muitos desempregados sobrevivem com o trabalho em aplicativos de transporte. Mulheres se submetem ao trabalho doméstico com condições análogas à escravidão. Enquanto isto, o desmonte dos equipamentos sociais deixa todas essas pessoas sem atendimento de saúde, educação e assistência social. E, no Rio de Janeiro, além da violência, nem água potável para beber... Nessas condições, boa parte desta população preta encontra um acolhimento e um espaço de sociabilidade nas igrejas. A pesquisa DataFolha, que mostra que a maioria dos evangélicos é composta por mulheres negras, é um indicador disto. E não se trata de “alienação”, mas, sim, uma situação que se adequa a este contexto. É lá que essas pessoas constroem uma rede de solidariedade e motivacional, que encontram apoio nessa vida duríssima e conseguem estabelecer um laço de sociabilidade. Com tudo isso, observa-se uma brutal concentração de riquezas. Dados da Oxfam mostram que seis brasileiros concentram uma riqueza maior que os 50% dos brasileiros mais pobres. E essa concentração patrimonial se expressa na organização da paisagem urbana nas grandes cidades, em que convivem guetos de riqueza e guetos de miserabilidade, com forças policiais mantendo esses espaços apartados. A cidade deixou de ser um espaço público para ser um mosaico de locais privatizados e segregados. Por isso, a luta pela representatividade precisa estar conectada com essa realidade, trata-se de representar essa realidade da população negra nas periferias. Candidaturas negras necessitam elaborar planos de governo, que não só levem em consideração essa situação, mas também que apresentem planos para enfrentá-la. E apresento aqui alguns ideias para isso. Um dos componentes do sistema que mantém essa concentração brutal de riquezas é o sistema tributário regressivo, que taxa pouco o patrimônio e onera mais o consumo. O ICMS, que incide sobre uma garrafa de água mineral, é o mesmo pago por um motoboy ou o dono do banco Itaú. E o ICMS é um dos principais componentes na arrecadação dos municípios, junto com o IPTU, que incide sobre a propriedade de imóveis. Nota-se como os meios de comunicação criticam muito mais os aumentos do IPTU que o ICMS. Não é a toa, é porque justamente o IPTU é um dos poucos impostos que tributam propriedades. O Estatuto da Cidade (lei 10257/2001) estabelece uma série de mecanismos de gestão social do espaço urbano e se baseia na função social da propriedade. Um instrumento importante, pouco aplicado, é o IPTU progressivo incidente sobre propriedades que não cumprem função social. Há até a possibilidade de desapropriação das mesmas para fins sociais como construção de moradia popular. Hoje, o número de pessoas sem teto é menor que o número de tetos sem pessoas. Outra questão importante é pensar mecanismos de apoio aos trabalhadores precarizados. Em uma reportagem na Carta Capital, um motoboy declarou que em certo dia estava tão cansado no meio da sua jornada, que deitou embaixo de um viaduto em um papelão encontrado. Criar espaços como centros de convivência e referência para esses trabalhadores é uma inovação importante. E, finalmente, em São Paulo houve uma grande conquista, que tem sido sabotada pela atual administração, que são os programas de fomento às culturas nas periferias, como o projeto VAI e a Lei de Fomento às Culturas nas Periferias. Estes programas possibilitam não só o protagonismo de coletivos de cultura nas periferias, mas também constroem uma cadeia produtiva nesses bairros, gerando oportunidades e renda. Assim, o fomento às culturas de periferia deve ser visto não apenas como uma “política cultural”, mas como um mecanismo de geração de oportunidades nas periferias. Notem que nessas ideias não me foquei nas agendas de ações afirmativas. Isso porque há consenso no movimento negro quanto a sua importância (lei 10639/03, cotas raciais, espaços institucionais específicos para gerenciamento dessas politicas, entre outros). Mas o enfrentamento da situação de miserabilidade e violência da população preta da periferia exige ir além dessa agenda. Em suma, o que defendo é um modelo de gestão que tenha uma centralidade periférica como forma de enfrentar essa dura realidade que vivemos.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.