São Paulo: mudança ou barbárie

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Mino Carta, em diversas ocasiões, comentou que a cidade de São Paulo é “autofágica”. Boa parte desta perspectiva paulistana decorre de uma presença forte de um pensamento conservador baseado, principalmente, em uma visão excessivamente privatista, endógena e, de quebra, intolerante.  Alguns fatos, aparentemente desconectados entre si, ilustram isto: 1. A respeito da tragédia que vitimou um jovem torcedor do Palmeiras na briga das organizadas deste time e do Corinthians recentemente. Conversei com vários jovens que fazem parte de torcidas organizadas e falei sobre este caso, demonstrando a barbárie que virou esta briga de torcidas. Um deles virou e disse: “O problema é que ele estava na hora errada e no lugar errado”. Estupefato com esta afirmação, perguntei se ele achava, então, que era justo uma pessoa morrer por um motivo tão banal, poderia ser um amigo ou parente dele. A resposta:  “Antes ele do que eu. Se fosse eu no lugar dele, ele estaria rindo agora”. 2. Já de há muito tempo, ministro uma disciplina no curso de jornalismo na ECA/USP que produz um jornal comunitário para  favela do Jardim São Remo, próximo ao campus do Butantã da USP. Tempos atrás, uma turma de alunos deixou de produzir uma edição especial do jornal sobre meio ambiente que tínhamos combinado com a comunidade. Como a edição seria produzida após o semestre letivo, a turma praticamente abandonou a produção, não cumprindo uma coisa combinada com a comunidade. Naquele ano, houve uma greve de funcionários e a reitoria decidiu ampliar o prazo para inserção das notas – não tive dúvidas, baixei a nota dos alunos que não cumpriram o prometido. Houve uma revolta geral. Argumentei que aquele comportamento prejudicava o relacionamento da universidade com a comunidade, podendo trazer problemas, inclusive, para as turmas seguintes. O comentário de uma aluna: “Não estou nem aí, não vai ser mais a gente que vai fazer isto”. 3. Em uma instituição religiosa espírita na zona leste de São Paulo, um casal de frequentadores foi “convidado a se retirar” porque, segundo a dirigente desta instituição, chegou a informação de que eles eram adeptos da prática de “troca de casais” (o conhecido “swing”), que feria a “moral” da instituição. Nesta mesma organização, uma das frequentadoras mais ativas atua como “laranja” em uma empresa de segurança privada tocada pelo seu irmão que é um policial da Rota. Estes fatos foram passados por uma pessoa conhecida minha que é desta casa e ela justificava a situação dizendo que, no caso da “laranja”, era um problema particular dela e, no outro caso, era um problema moral. A autofagia de que fala Carta se deve a comportamentos de uma parcela da classe média que se volta a um domínio cada  vez mais privado, pensa apenas no universo do seu próprio umbigo e troca a ética pelo moralismo. O último fato é emblemático, o comportamento privado de um casal é condenado (o comportamento deles não prejudica ninguém) enquanto que a prática ilegal e antiética da “laranja” é desconsiderada (os dados mostram as consequências destas empresas de segurança mantidas por policiais, muitas delas se envolvem com o crime organizado, há um crescimento vertiginoso dos homicídios praticados por policiais nestes “bicos” além do que fortalece um conceito de privatização da segurança). É por isto que esta classe média conservadora referenda práticas jornalísticas condenáveis como as da revista Veja (cada vez mais com indícios de envolvimento com o esquema de Cachoeira) e dela brotam comportamentos de brutal intolerância e desrespeito com o outro. Uma classe média que não se importa em se distinguir pelo acesso a bens culturais mas em ter a posse de bens materiais e de consumo (por isto, lêem a revista Veja, uma revista malfeita, com uma editoria cultural de péssima qualidade e um texto sofrível). A posse de tais bens de consumo já lhe confere uma “segurança” para poder atacar outro e aí vemos brotar os comportamentos intolerantes mais absurdos, como a violência racial, social, homofóbica  e de gênero. O mais grave é uma tolerância com esta intolerância, um certo ar de que “é assim mesmo” – comportamentos condenáveis que tentam se redimir na fuga ao moralismo mais tacanho e atrasado, a ponto de termos um governador da Opus Dei, do candidato tucano à presidência no ano passado fazer um discurso tipicamente de extrema direita (a la neocons republicanos estadunidenses) e a maior universidade do país ser dirigida por um reitor com práticas autoritárias. Este comportamento é autofágico porque destrói o espaço público e uma cidade com as dimensões de São Paulo tem problemas que só podem ser resolvidos com um verdadeiro debate público. O conservadorismo só levará a cidade para o fundo do poço. Fazendo uma apologia do que diziam os socialistas, ou se rompe com isto ou teremos a barbárie.