A chuva é recorrente, o descaso também

por Leonardo Sakamoto: Falamos de tragédias em Santa Catarina, em Angra dos Reis, na Ilha Grande, em São Luiz do Paraitinga, no Jardim Pantanal, como se fossem situações desconectadas da ação humana, resultados da fúria divina e só.

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A chuva é recorrente, a incompetência do poder público também por Leonardo Sakamoto, no blog do Sakamoto “Todo ano desliza. Moro aqui há 16 anos e sempre foi assim.” A frase é de Antonio Paulo de Souza, que perdeu a casa e a maior parte dos pertences em um deslizamento ocorrido no morro do Macuco, em Mauá, Grande São Paulo, e foi colhida pelo repórter Guilherme Balza, do Uol Notícias. Uma mulher de 34 anos e seu filho de 11 morreram soterrados com o deslizamento. A Prefeitura de Mauá distribuiu nota oficial informando que não obteve autorização judicial para remover as famílias da área, enquanto os moradores disseram que nunca foram notificados para deixar o local. (O tema é tão recorrente que passa a ser estranho tratá-lo aqui no blog. Vamos fazer uma experiência… Atenção para o texto a seguir) Com exceção dos fanáticos religiosos que enxergam sinais da primeira ou segunda vinda do messias (dependendo da religião em questão), apenas os mais míopes não percebem que o planeta está dando o troco. Não estou falando apenas do aquecimento global e das já irreversíveis mudanças climáticas que vão gratinar a Terra nos próximos séculos, mas também dos crimes ambientais que fomos acumulando debaixo do tapete e que, agora, tornaram-se uma montanha pronta a nos soterrar. Falamos de tragédias em Santa Catarina, em Angra dos Reis, na Ilha Grande, em São Luiz do Paraitinga, no Jardim Pantanal, como se fossem situações desconectadas da ação humana, resultados da fúria divina e só. Um prefeito de uma cidade atingida disse que só restava a ele rezar para Deus controlar as águas. Coitada da população que votou nele e agora vê o administrador do município “terceirizando” o trabalho para o plano superior, provavelmente dando continuidade ao que foi feito pelos que vieram antes dele. A declaração é da mesma escola daquela de um assessor de George W. Bush quando questionado sobre a herança deixada às próximas gerações pelos gases geradores de efeito estufa da indústria norte-americana. Não me lembro da frase exata, porque lá se vão anos, mas foi algo do tipo: “isso não será um problema, porque Cristo voltará antes disso”. Depois alguém pergunta por que a Cacique Cobra Coral ganha tanto dinheiro… Um renomado cientista declarou pouco antes da cúpula do clima que era melhor deixar os fatos tomarem seu curso natural, o mundo aquecer, refugiados ambientais quadruplicarem de número, cidades nos países ricos serem invadidas pelo mar, a fome surgir no centro do mundo. Só assim pessoas e países tomariam atitudes reais. Situação que, no Brasil, é vulgarmente conhecida como “a hora em que a água bate na bunda”. O problema é que, se nada for feito até lá, quando chegarmos nesse ponto, talvez não haja mais tempo para nada, além de lamentar. E rezar. O fato é que ocupação irregular, planejamento, plano diretor, reforma urbana são expressões ouvidas apenas no tempo das chuvas. Na seca, elas evaporam do léxico não só dos mandatários, mas também de pobres e ricos, que continuam construindo, desmatando e poluindo. Suas razões são diferentes, mas o efeito é o mesmo. Vale lembrar que tudo isso dito aí em cima não gera um voto, pelo contrário: quem é o doador que vai ficar feliz por ter a construção de sua casa em uma área de preservação ambiental embargada? Ou qual o apresentador de TV, que teve sua pousada de luxo removida de um paraíso ecológico por estar em local impróprio, toparia fazer campanha de graça para o político que atuou firmemente para a referida pousada ir ao beleléu? Considerando que quando há um problema urbano os mais pobres são expulsos do lugar onde estavam para um lugar perto da esquina entre o “não me encha o saco” com o “não me importa aonde”, é de se esperar também que a remoção deles de áreas de risco e de locais inundáveis também seja precedida de grandes protestos que irão reverberar nas urnas. Então, ninguém faz nada, só promete e faz cara de preocupado e de entendido. Afinal, é de palavras vazias que vive nossa política. Como já disse aqui neste espaço, qualquer solução eficaz adotada vai passar por mudanças no comportamento de todos nós. Como diria Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência, “todos querem a liberdade, mas quem por ela trabalha?” No Brasil, muito poucos. A maioria segue escondida no conforto do anonimato, defendendo o seu, fazendo meia dúzia de ações insignificantes para dormir sem o peso da consciência e o resto que se dane. Não querem mudanças no modelo de desenvolvimento que impactaria o “American Way of Life” que importamos, apenas reciclar latinhas de alumínio e dar três descargas a menos no vaso sanitário por dia. E seguem respondendo de boca cheia que fariam de tudo para ajudar o meio ambiente. E não conseguem, nem ao menos, votar direito. Eu disse a papagaiada acima (de “Vamos fazer uma experiência” até aqui) há exatamente um ano. Olhe que situação bizarra, não foi necessário mudar nada, o texto é exatamente idêntico! Na época tinha certeza que, em 2011, pouco ou nada mudaria e que o texto estaria extremamente válido para o ano seguinte. Dito e feito. Em uma metrópole em que a popularidade do prefeito é inversamente proporcional ao índice pluviométrico, não é de se estranhar que o trabalho da imprensa também seja cíclico. O que é triste. Pode ser impossível resolver todos os problemas de uma gigantesca aglomeração urbana, que foi paulatinamente impermeabilizada com asfalto e concreto e jogou para locais de risco um grande contingente de sua população, para depois culpá-los pelas próprias mortes quando soterrados morro abaixo. Parafraseando Nelson Rodrigues, “São Paulo, perdoa-me por me traíres”. Mas muitas mortes e parte do sofrimento poderia ser evitado, bastando para isso a execução de políticas públicas de habitação e saneamento. Não adianta desocupar áreas de risco sem oferecer outras alternativas de moradia – só quem já ficou sem teto sabe o quanto isso pode doer. (Novamente do Uol Notícias: “A gente não vai sair. Não tem lugar certo. Se tivesse uma solução definitiva, até ficaríamos contentes em sair, mas como não há, como é que a gente faz?”, questionou Alzira Marques, que mora com a família em uma casa próxima de onde ocorreu o deslizamento.) Ao invés disso, realizamos pesados investimentos na tática do “expulsar para resolver”, a velha e boa limpeza social, já adotada em larga escala em regiões com ações urbanas como os bairros da Luz e Barra Funda. Para onde vão esse povo “saído” de lá? Beira de represas, morros, ou várzeas – como sempre foi -afogando-se em merda em locais distantes do Centro e sem estrutura. Como o Jardim Pantanal no ano passado, lembram-se? Políticas de combate à especulação imobiliária e de ocupação dos imóveis fechados na região central das grandes cidades são antiga reivindicação dos movimentos sociais por moradia. Ao invés disso, preferimos ajudar no financiamento de apartamentos em locais distantes que demandam a instalação de serviços públicos. Super lógico. Mas, sei lá, que se danem. Não é problema meu, morador de locais onde a água não empoça. Só não infestem a porta da Sala São Paulo, por favor.