Brasil precisa romper camisa de força e superar tripé da estagnação

Para que as engrenagens deste capitalismo voltem a funcionar, permitindo a elevação da produtividade com queda da desigualdade - equação não natural e que depende do papel do Estado e da pressão da sociedade - temos que superar o tripé da política econômica.

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Por Alexandre Freitas Barbosa*, no Valor Inflação, câmbio, juros e superávit primário. O debate econômico no Brasil tem girado em torno destas variáveis, na ilusão de que se possa captar o seu funcionamento a partir de relações puramente quantitativas, dissociadas da dinâmica produtiva, das relações sociais e do padrão de inserção externa do país. Ficamos, assim, presos ao tripé da política econômica - câmbio flutuante, meta de inflação e superávit primário -, reverenciado como se fosse a própria santíssima trindade. Os dois candidatos de oposição juram de pés juntos que o tripé sagrado, caso eleitos, será mantido. O próprio governo, que tentou instaurar uma nova matriz econômica, depôs as suas armas, em virtude do calendário eleitoral, e se curvou aos desígnios do Deus "mercado". Esse se parece mais com o que o historiador Fernand Braudel chamava de "contra-mercado", no intuito de revelar como, na camada superior da vida econômica, os grupos com poder de monopólio exercem controle sobre as políticas públicas, deixando de fora a sociedade dos acordos de cúpula. É importante ressaltar que o tripé da política econômica foi inaugurado no segundo governo FHC na sequência da crise cambial de 1999, e mantido durante o governo Lula. Nesse período, favorecido pela maré montante da economia global e pelas políticas de reativação do mercado interno, ele parecia funcionar perfeitamente. O mundo crescia e as exportações brasileiras, não apenas de commodities, acompanhavam seu ritmo. Os juros caíam, estimulando o crescimento econômico e o aumento do gasto público, mesmo com superávits primários elevados. O câmbio valorizado, especialmente, a partir de 2006, assegurava preços internos sob controle. O quadro acima foi comprometido não exatamente pela crise dos países desenvolvidos, mas pelo novo modo de entrosamento do Brasil à economia global. A partir de 2011, China, Estados Unidos e União Europeia passaram a desovar seus estoques no mundo, afetando os países com mercado interno dinâmico e moeda em franca valorização. O corte de gastos e a elevação dos juros no início do governo Dilma contribuíram para a desaceleração. As expectativas já estavam comprometidas quando o governo atendeu todas as demandas do setor produtivo (desonerações fiscais, concessões, desvalorização do câmbio e redução dos juros), que respondia acusando a presidente de "intervencionista". Ou seja, nem a política econômica do governo Lula é a "maravilha" que se pinta e nem a do governo Dilma é o "fracasso" descrito por boa parte dos analistas econômicos da grande mídia. O que mudou foi o contexto nacional e internacional, transformando o tripé numa armadilha para o crescimento. Para elucidar essa mudança, é preciso compreender o funcionamento das engrenagens do capitalismo no Brasil. Deve-se ressaltar que Estado, mercado e sociedade civil se relacionam de diversas maneiras nos vários tipos de capitalismo. Não existe capitalismo sem Estado. Portanto, a questão é saber como e onde atua o Estado, com que objetivos. O que dizer, então, da "variedade de capitalismo" em vigor no Brasil? Esse conceito cada vez mais em voga enfatiza os diversos padrões de eficiência e de complementaridade institucional vigentes nas economias com alguma capacidade de endogeneizar os processos de acumulação de capital. Tal é o caso do Brasil, que se diferencia de boa parte da periferia da economia mundial contemporânea. Partindo desta perspectiva, não existe política econômica "boa" ou "ruim", mas, sim, mais ou menos adaptada a cada variedade de capitalismo. Como compreender a economia brasileira recente sob este prisma? Trata-se de um capitalismo revigorado nos anos 2000, não mais restrito à esfera financeira, tendo elevado o nível de investimentos produtivos e se aproveitado de maneira positiva, algo até então inédito, do potencial inclusivo do mercado de trabalho e da expansão de uma rede de proteção social, ainda insuficiente. Isso apesar do tripé. Agora, entretanto, o déficit em transações correntes se amplia num contexto de baixo crescimento e pressões inflacionárias concentradas no setor de serviços. O governo faz o câmbio se valorizar - por meio do aumento dos juros - para controlar uma inflação que não é de demanda, penalizando os investimentos públicos e as políticas sociais a fim de assegurar o superávit primário do gosto do freguês, mais uma vez o sacrossanto "mercado". A variedade de capitalismo existente no Brasil revela então as suas deficiências estruturais. Nesse novo contexto, há quem veja o problema na "falta de competitividade". Ele é bem mais complexo, originando-se de várias causas - política cambial errática, elevada capacidade ociosa, insuficiente estratégia de integração regional, indefinição do marco regulatório para a infraestrutura econômica e social, limitado acesso ao crédito, inclusive para exportações -, que impedem a internalização de setores e nichos de alta produtividade via capital nacional ou estrangeiro. As propostas de assinatura de acordos de livre-comércio com os países desenvolvidos, hoje em negociação, em vez de aumentarem a competitividade, apenas completariam o processo de vinculação passiva do país às cadeias internacionais de valor. Paralelamente, as altas taxas de juros impõem um patamar de rentabilidade mínimo para as empresas concessionárias de serviços públicos, comprometendo o papel do Estado na definição de metas de investimento e de preços exequíveis para o sistema econômico. Os juros altos impõem ainda uma pressão de custos para o sistema produtivo, travando a ampliação do mercado de capitais e jogando para o BNDES a hercúlea tarefa de atuar em todas as frentes - infraestrutura, inovação, setor industrial, governos municipais e estaduais e internacionalização das empresas brasileiras. Para completar, constrangem a expansão dos gastos em educação, saúde, habitação e mobilidade urbana, que precisam de mais investimentos e cujos impactos sobre o emprego e a renda se mostram expressivos. Em síntese, o ciclo expansivo da era Lula se esgotou pelas limitações que lhe eram inerentes, as quais foram aguçadas pela crise financeira dos países desenvolvidos, alterando assim o padrão de inserção externa da economia brasileira. Não é algo fácil e nem passível de ser feito no curto prazo. Mas se não o fizermos, corremos o risco de conviver com taxas de crescimento inferiores a 3% ao ano e por em risco os avanços sociais obtidos na primeira década do século XXI. *Alexandre de Freitas Barbosa é professor de história econômica e economia brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).