O crescimento da direita e a marcha da família

É fundamental entender o processo de “reacionarização”. Existem dois tipos básicos de sentimentos a serem combatidos: o reacionarismo de valores e o sentimento anti-Estado, que se alimenta das inúmeras deficiências da administração pública brasileira.

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[caption id="attachment_26890" align="aligncenter" width="521" caption="Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de 1964"][/caption] Por Rodrigo Salgado, em seu blog Tenho reparado que de um tempo pra cá, ronda certo espanto nas redes sociais. Dentro de todo o campo progressista (que considero como sendo da centro-esquerda até os mais revolucionários, partidários ou não), não é incomum ver textos, tuítes e posts indignados com o reacionarismo crescente que pulula na internet e fora dela. Das redes sociais às ruas, passando por canais de televisão, cresce rapidamente a presença de ideias homofóbicas, racistas, classistas, antipetistas, contra a esquerda em geral, conservadoras e antiestatais. Para contribuir com o debate e organizar as ideias, tento pontuar alguns fatores que penso ser relevantes para a reflexão. 1. Fim da quarentena Oficialmente, a ditadura militar acabou em 1985. Independentemente dos motivos que levaram ao seu fim, o fato é que os derrotados foram – ao menos no que diz respeito ao controle estatal – os militares e a direita. Basicamente, toda ditadura se organiza em torno dos discursos do medo, da ordem e dos “valores do homem de bem”, notadamente aqueles ligados ao conservadorismo religioso. Com a queda do regime, é natural que o discurso contrário cresça. E não só. Junto com a derrota, vem a vergonha dos valores apregoados. Por mais que a transição tenha sido negociada e efetivamente tenha protegido o terrorismo de Estado, no campo “moral” houve um inegável silêncio por parte dos conservadores. Hoje, 29 anos depois do fim do golpe, a quarentena da vergonha reacionária acabou. Em outras palavras, havia um contingente razoável de pessoas que sempre acreditou nestes discursos e por medo ou vergonha, estava calado. Com a distância dos anos de chumbo, a vergonha rareou e eles saíram da toca. 2. Derrocada do desenvolvimentismo A marca do pensamento latino americano do século passado foi sem sombra de dúvidas a escola estruturalista, em suas inúmeras formas. Aqui, desde 1930, discutimos o modelo de desenvolvimento a ser adotado. O golpe militar enterrou o modelo nacionalista, baseado em investimento estatal para empresas brasileiras, públicas ou privadas. O fim da ditadura enterrou a outra grande vertente, baseado no investimento externo com foco em multinacionais. A ascensão do main stream monetarista desde Collor ventilou por aqui novos ares em velhas ideias. Com o neoliberalismo ressuscitou-se o sentimento privatista anti-Estado. Juntando-se com o velho lacerdismo e o próximo item, cria-se mais caldo para a cultura conservadora. Cresce então a figura de quem é conservador nos valores (moralismo anticorrupção) e liberal na economia (anti-Estado). 3. 12 anos de PT Por mais petista que você seja, é impossível não achar que depois de 12 anos o partido que governa o país não tenha cometido toda espécie de erro. Assim, como não se agrada todo mundo nem quando morto, é normal que o sentimento antipetista cresça. Como citei acima, os inevitáveis erros de ser gestão e as escolhas do governo se agravam na somatória dos pontos 1 e 2. 4.  Redes sociais Outro fator importante, plataformas como Facebook, Twitter e afins, se não são a tão sonhada democratização do acesso à informação, ajudaram em muito na proliferação de ideias. Boas ou não. O efeito delas é tão forte que não é nada incomum que os maiores jornais televisivos pautem discussões virtuais em suas edições. Acho que o “efeito novidade” também contribui para o peso que as redes têm sobre o noticiário, passando a falsa impressão de que qualquer linha de pensamento é muito maior do que realmente é. 5. Jornadas de junho/13 Por conta do item 1, durante anos quem monopolizou a pauta de reivindicações no país foi a esquerda e em especial, o PT. Com a vitória eleitoral de 2002, os movimentos sociais “de grande porte” entraram em compasso de espera. Odeio a ideia de cooptação (até porque boa parte dos movimentos nasceu do PT), mas independentemente da análise que façamos, o fato é que junho destampou a panela das manifestações. Eu mesmo presenciei cenas bizarras. Numa das maiores manifestações em São Paulo, cheguei ao ato topando com um grupo de amigos anarquistas. Após andar 5 minutos, me vi ao lado de um grupo de ultra-direita, que pregava trabalhos forçados, fim da maioridade penal, pena de morte e estultices do tipo. Andando uns 20 passos à frente, vi Nabil Bonduki, vereador do PT. Mais um minuto de caminhada, um grupo do PSOL, que caminhava lado a lado com aquele pessoal do “sem partido”. Estar no governo tirou naturalmente a capacidade do PT de aglutinar e focar as ações dos movimentos que nas décadas passadas ocuparam as ruas. 6. Crescimento econômico em descompasso com a infraestrutura Confesso que ando meio de saco cheio com o discurso “inclusão através do consumo”. De qualquer forma, é fato que assim como o boom econômico da ditadura foi fator importante para a destruição de serviços públicos urbanos como a educação, o aumento da renda do brasileiro está provocando o colapso das estruturas de serviço, públicas ou privadas. O aumento do poder de compra e da quantidade de consumidores cria bolhas e gargalos em todos os segmentos da economia, gerando mais insatisfação, que é inflada pelo antipetismo e o ativismo nas redes sociais. 7. Nicho de mercado Onde há público, há mercado. Pensando nisso, figuras como Silvio Santos e o grupo Abril têm especializado seus noticiários para fomentar tanto os nichos reacionários quanto os ultra-liberais. Não que eles não sejam conservadores e anti-Estado. A questão é que a ocasião faz o ladrão e nesse caso, juntou-se a fome dos neo-conservadores com a vontade de comer da imprensa. Não que seus donos nunca gostem muito do PT, apesar dos inolvidáveis esforços do partido para agradá-los. Essa retroalimentação dos meios de comunicação também passa a impressão de que o conservadorismo é maior do que efetivamente é. É importante lembrar que não descarto a hipótese de estarmos vivenciando uma guinada conservadora. O que pontuo é que havia uma demanda reprimida que após a distensão da ditadura, normalmente voltou à superfície. Há quem se aproveite do momento para tentar inflá-la, sugerindo golpes – brancos ou não – tanto na institucionalidade quanto ao PT. A ideia aqui é passar elementos que ajudem a desmistificar o sentimento de um “ataque total da direita” contra o PT, esquerda ou qualquer outro grupo que não seja ou conservador ou liberal (ou os dois). Prova de que o poder de fogo é menor do que sugerem algumas análises mais histéricas é que a indignação com o discurso ultra-reacionário de certos comentaristas provoca reações institucionais e individuais. Ao que vi, a comentarista do SBT foi obrigada a se retratar e pairam possíveis processos contra a emissora e a própria jornalista. Outra coisa que é importante é manter o foco na disputa política da sociedade. Sem nos esquecermos dos recursos judiciais e estatais para coibir comentários e práticas que flertam com o fascismo, é fundamental disputar todos os espaços políticos com política. A histeria só corrobora para dar audiência ao reacionarismo. Outra coisa fundamental é entender o processo de “reacionarização”. Como disse, existem dois tipos básicos de sentimentos a serem combatidos. O primeiro é o reacionarismo de valores: homofobia, racismo e preconceito de classe (ou melhor, contra pobre). Ainda que de forma velada, não é muito difícil encontrar comentários homofóbicos por quem se diz progressista (ou de esquerda). Ao mesmo tempo, há o sentimento anti-Estado, que se alimenta das inúmeras deficiências da administração pública brasileira. Os anos neoliberais das últimas duas décadas – juntamente com a mãozinha das tradicionais deficiências estatais – insuflaram quem acha que “Estado é mau, mercado que é legal”. É importante diferenciar quem é quem aqui, até porque existem pautas que são comuns à esquerda e aos ultra-liberais, como a descriminalização das drogas, a questão do aborto e afins. Mais ainda, é fundamental entender que a classe dominante muitas vezes se vale do discurso moralista para alcançar seus próprios fins, qual seja, aumentar a presença dentro do Estado. O discurso pró-privatização (que conta sempre com a ideia anticorrupção) é o melhor exemplo. Por isso, além de compreender que há um contingente grande de pessoas – em qualquer sociedade – que é e sempre será reacionária (e ultra-liberal), é urgente que os grupos de esquerda percebam que há uma reorganização não só da direita, mas de todo o espectro político brasileiro. Se as demandas são as mesmas há séculos, as formas como se apresentam e seus interlocutores, não. Penso que o futuro é totalmente incerto, podendo variar de um avanço no que tange aos direitos civis até um retrocesso democrático absurdo. Lógico que existem fatores importantes que não foram considerados, como o avanço do conservadorismo religioso e a crise internacional. Mas acho que isso pode ser assunto pra outro post. Por hora, é importante entender que apesar de crescente, o conservadorismo brasileiro ainda é menor do que parece.