Praia e sertão: cabeças cortadas e cabeças coroadas

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No meu périplo sertanejo, deixo Serra Talhada e Pernambuco pra trás, e rumo para Alagoas. É uma viagem de trabalho. Ao lado do cinegrafista Ademir Salandim e do técnico Francisco Miranda, gravo uma série de reportagens que será exibida no Jornal da Record (nem sei se alguém tem curiosidade em saber, mas não posso dizer o tema da matéria, porque a concorrência está de olho em cada passo nosso; é o que dizem, pelo menos). A descoberta do dia é uma cidade que nem estava em nosso roteiro original:  Piranhas (AL), na beira do rio São Francisco. Que cidadezinha encantadora: casario colonial (ou seria melhor dizer "casario imperial", porque muitas construções datam do século XIX), com fachadas coloridas, e ruas bem estreitas, ocupando um pequeno vale de frente para o rio. Passamos uma tarde ali, colhendo imagens. A cidade é conhecida também porque lá ficaram expostas as cabeças de Lampião e outos cangaceiros mortos em 1938. Cena tétrica. As cabeças, claro, não estão mais na escadaria , em frente à Prefeitura de Piranhas. Mas a foto ficou - para lembrar nossa história de violência e crueldade. A poucos metros do centro histórico, uma cena mais agradável: um campo de futebol, com dimensões oficiais e grama em perfeito estado - bem na margem do rio. Não há ninguém jogando (e seria difícil mesmo porque o sol é de rachar a cuca). Mas fico a imaginar o luxo: bater uma bola ali, na margem do rio. Que meia-esquerda ou centro-avante não se inspiraria com essa paisagem tão linda! Na época de Lampião - claro - não havia esse campo por aqui! Que pensamento bobo... Acho que é uma forma de parar de pensar naquelas terríveis cabeças cortadas. É um devaneio rápido, porque precisamos cair na estrada de novo. Nem sobra tempo pra conhecer o Xingó, um "cânion" no São Francisco. Dizem que é maravilhoso. Mas fica para a próxima. Cruzamos a ponte sobre o São Francisco e já estamos em outro estado: Sergipe. Tenho uma enorme simpatia pela capital sergipana, Aracaju. Ao contrário do Recife e de Fortaleza (que infestaram suas orlas com prédios modernosos, altíssimos e de gosto duvidoso), Aracaju manteve-se mais discreta. A "Orla do Atalaia" tem prédios baixos, e os bares nem são muito barulhentos. Lugar agradável para uma caminhada no começo da noite, depois de um dia inteiro de gravações. Mas não consigo fazer exercício sem parar pra olhar placas, estátuas, nomes de ruas ou praças.... Encontro, ali na orla de Aracaju, um conjunto de esculturas com nome pomposo: "Monumento aos Formadores da Nacionalidade". Lado a lado, estão as estátuas, em tamanho natural, de Tiradentes, José Bonifácio, Dom Pedro II, Duque de Caxias, Barão do Rio Branco, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek... Todos engravatados, engalonados. A exceção é Tiradentes: ele fo retratado com a túnica e (de novo, gosto duvidoso) com a corda pendurada no pescoço. Curiosamente, Tiradentes (único, entre os ali representados, que não era da grande elite brasileira) encontra-se apartado do grupo principal, e quase de lado para os passantes. Fico a pensar se o autor do monumento fez de propósito. Teria afastado Tiradentes do grupo principal, e vestido o Alferes com a roupa do cadafalso, como a marcar a diferença de classe? Noto que pouca gente ali na calçada presta atenção ao monumento. Com exceção de um jovem que pede pra namorada fotografá-lo ao lado de Getúlio. O rapaz  acha engraçado que Vargas fosse tão baixinho: "olha só, ele bate no meu ombro". A namorada bate o retrato. Eu sigo em frente. Encontro, a menos de 500 metros, outro monumento com estátuas em tamanho natural: dessa vez, estão ali representados  os "ilustres filhos da terra". Ou seja, sergipanos que ganharam fama. São juristas, professores, intelectuais. Todos, de terno e gravata: Silvio Romero, Tobias Barreto, Jackson Figueiredo, entre outros. Fico a pensar: não há heróis do povo? Onde estão? Do meu lado, um menino chora, pedindo sorvete pro pai. Parecem turistas. Passam batido por Tobias Barreto e os outros. Lembro que, um dia antes, na estrada a caminho de Aracaju, eu passara por Poço Redondo - pequena cidade no sertão sergipano. Ali, não há engravatdos nos monumentos. A pracinha na avenida principal tem um monumento simples, com chapéu de cangaceiro e o nome: "Virgulino Ferreira da Silva". Estátua de Lampião também não há, mas ali aparece anotada uma estrofe atribuída ao rei do cangaço: "Me chamo Virgulino Ferreira Lampião Manso como um cordeiro Bravo como um leão Trago o mundo em rebuliço Tenho a cabeça de trovão" No Nordeste profundo, o povo prefere a cabeça cortada de Lampião - "cabeça de trovão - às cabeças coroadas de intelectuais que se transformam em estátuas de beira da praia.