Sem limites para linchar reputações, imprensa rejeita direito de resposta

Histórias como a do padre paulistano Júlio Lancellotti e a do ex-ministro do Esporte Orlando Silva, que tiveram suas reputações colocadas em xeque mesmo considerados inocentes, mostram o quão prejudicial pode ser a falta de espaço para responder calúnias.

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Por Felipe Bianchi, para Barão de Itararé* Histórias como a do padre paulistano Júlio Lancellotti e a do ex-ministro do Esporte Orlando Silva, que tiveram suas reputações colocadas em xeque mesmo considerados inocentes após os julgamentos de seus respectivos casos, mostram o quão prejudicial pode ser a falta de espaço e voz para que os cidadãos se defendam de ofensas, calúnias e difamações veiculadas na mídia. Para Lancellotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, no tradicional bairro da Mooca, em São Paulo, “com a mesma rapidez que a imprensa constrói e consagra uma história ou um cidadão, ela os destrói”. O seu caso remete ao ano de 2007, quando a polícia civil de São Paulo abriu inquérito a fim de apurar uma denúncia de extorsão feita pelo padre: ele era forçado a pagar enormes quantias em dinheiro a um ex-detento da Fundação Casa sob ameaça de ser denunciado à imprensa por abuso sexual. No dia 23 de maio de 2011, Anderson Batista e Conceição Eletério, casal responsável pelo esquema de extorsão, foram condenados pela Justiça a partir de imagens registradas em câmera que flagrou abordagem violenta ao padre. Mas para Lancellotti a repercussão deste fato nos meios de comunicação foi bem mais discreta que o “apedrejamento” promovido contra ele anteriormente, sem que pudesse fazer uso do direito de resposta. “Quando denunciei o esquema e sofri acusações de pedofilia”, recorda Lancellotti, “a imprensa fez um acampamento em frente à minha casa e instalou um verdadeiro inferno”. Ele descreve os artifícios usados pelas equipes de reportagem, ansiosas por flagrá-lo em situação constrangedora: “Chegaram a colocar um adesivo em cima da campainha de minha casa, de forma que ela não parasse de tocar e eu tivesse que sair, irritado, para desligá-la”, lembra, acrescentando que “também sacudiam o portão e jogavam restos de lanche”. Mesmo com sua absolvição, Lancellotti, conhecido por ser um histórico defensor dos moradores de rua, salienta que a cicatriz do “linchamento midiático” que sofreu é irreversível. Em relação ao direito de resposta, ele afirma que, “para não ser injusto”, um ou outro veículo o procurou para escutá-lo, mas até mesmo cartas de personalidades renomadas brasileiras, em sua defesa, foram ignoradas pelos grandes jornais. “Quanto ao direito de resposta propriamente dito, acredito que é uma ilusão. Buscá-lo na Justiça é complicado e, até lá, a grande mídia publica o que ela quer e do jeito que bem entende”, dispara. O caso do soteropolitano Orlando Silva, por sua vez, ilustra como a ausência do direito de resposta também atinge o mundo da política, no qual “os meios de comunicação guardam interesses próprios, tanto econômicos quanto ideológicos”. Em 19 outubro de 2011, a revista Veja publicou reportagem de capa acusando o então ministro do Esporte de receber propina, em plena garagem do Ministério, em Brasília, referente a um esquema de corrupção envolvendo uma organização não-governamental. A única fonte da revista era João Ferreira Dias, ex-cabo da Polícia Militar com histórico de denúncias vazias contra figuras públicas, além de envolvimento em diversas ocorrências criminosas – em 2013, inclusive, foi preso por receptação em Samambaia, no Distrito Federal. Ignorando a “ficha suja” da fonte e sem nenhuma evidência das acusações feitas, os grandes meios de comunicação amplificaram a denúncia da revista Veja, repercutindo ostensivamente o caso. A pressão resultou na derrubada do ministro apenas 11 dias após a reportagem em questão. “Eu passei todos aqueles dias sabendo que não teria saída, já que aquilo havia se tornado um massacre. Então usei esse período para erguer minha voz contra essa operação, denunciado a manipulação grotesca da qual fui vítima”. Seu gabinete até tentou fazer uso do direito de resposta, mas o benefício depende da interpretação de cada juiz e Orlando Silva não obteve sucesso. “Enviamos textos, respondemos reportagens e pedimos o direito de resposta na Justiça, mas não fomos atendidos”, relata. Em 11 de junho de 2012, a Comissão de Ética da Presidência da República decidiu arquivar o processo contra ele. O motivo: falta absoluta de provas. Diferentemente da acusação, a absolvição não ganhou manchetes e grandes chamadas de capa – “ela foi praticamente escondida”. “O que mais dói é que até a minha companheira, atriz com passagem por diversas companhias de teatro, foi envolvida em boatos sobre expressão de tráfico de influência praticada por mim, por conta de um patrocínio da Petrobras, que já dura mais de dez anos, à companhia em que atua. Beira a requintes de crueldade”. O primeiro caso do período eleitoral e a chiadeira da Folha Na edição impressa da Folha de S. Paulo do dia 2 de agosto, o jornal publicou texto de autoria do candidato ao governo de Pernambuco, Paulo Câmara, após determinação da Justiça Eleitoral. O direito de resposta foi solicitado por conta de uma reportagem em que o deputado federal José Augusto Maia alegou ter recebido oferta de propina em troca de apoio à coligação que lançaria a candidatura de Câmara. A matéria traz ainda duas outras fontes, mantidas em condição de anonimato, que confirmam a versão de Maia. Irritada com a concessão da Justiça Eleitoral, a Folha produziu no mesmo dia da publicação do texto uma segunda matéria escutando fontes ligadas, principalmente, aos proprietários de grandes meios de comunicação, como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Elas criticaram o direito de resposta sob o argumento de que este “cercearia a liberdade de expressão” e de que “a sociedade deixa de ser informada” (pelo motivo de o acusado ter direito à defesa nas mesmas linhas que o atacaram). Uma terceira reportagem foi publicada no dia seguinte (3 de agosto), em que Celso Schröder, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), além de um ministro, cuja identidade não foi revelada, defendem a importância de que o direito de resposta tenha regras definidas para que não comprometa a autonomia do jornalismo, mas também não cometa injustiças com quem se sente ofendido ou caluniado. Na legislação eleitoral, porém, essas definições já existem e foram levadas em conta no caso específico da Folha. Constituição e as regras do jogo O artigo 5º da Constituição Federal assegura “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. A lacuna em relação ao tema foi deixada pelo fim da Lei de Imprensa, criada em plena ditadura militar (1967) e extinta pelo Supremo Tribunal Federal em 2009. Desde então, a Justiça é obrigada a julgar caso a caso os pedidos de direito de resposta, deixando o tema amplamente aberto à interpretação. O Projeto de Lei (PL 6446/2013) apresentado pelo senador Roberto Requião em 2011 busca preencher esse “vazio legal” em relação ao tema, já tendo passado pelo Senado e tramitando, atualmente, na Câmara dos Deputados. De acordo com a deputada Luciana Santos, relatora do Projeto, há pouca esperança de que ele seja votado no curto espaço de tempo que a Câmara dispõe até as eleições, no dia 5 de outubro, mas é grande a expectativa de que se confirme maioria para aprová-lo. O texto do Projeto de Lei garante ao ofendido o direito de se manifestar na mesma periodicidade, dimensão e intensidade da agressão sofrida – ou seja, de forma proporcional à ofensa. Na avaliação da deputada, a dificuldade em aprovar leis que envolvam os interesses da imprensa, mesmo quando tratam de direitos democráticos, é que todo debate que se faz sobre mídia no Brasil é boicotado e tachado como tentativa de censura. “Há interesses econômicos, ideológicos e políticos”, argumenta. A disputa eleitoral, em sua visão, escancara a polarização em relação ao papel que a mídia cumpre. A recifense afirma que “é uma ilusão imaginar que os veículos de comunicação são imparciais, como mostra a história recente do país”. “A informação forma conceitos, reflete comportamentos, influencia a tomada de decisões e é, por isso, que a comunicação deve ser tratada como um direito humano”, opina. “O direito de resposta é mais um dos direitos que devem ser básicos ao cidadão”. Direitos (de resposta) para todos Mas e quando o ataque não é contra apenas um indivíduo, atingindo grupos sociais inteiros – negros, indígenas, homossexuais ou até mesmo casos de machismo e discriminação de gênero? Bia Barbosa, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, lembra o caso do programa Tardes Quentes, produzido pela RedeTV!. “Em 2005, já havia, tanto no Ministério Público Federal (MPF) quanto entre organizações que lutam pelos direitos humanos, a ideia de denunciar o programa recheado de pegadinhas preconceituosas apresentado por João Kléber”, conta. “Levamos o caso à Justiça e, até de forma surpreendente, a decisão foi favorável a nós”. Ela relata que a juíza Rosana Ferri Vidor exigiu direito de resposta imediato para os grupos ofendidos, além de que o programa parasse de produzir conteúdos como os considerados ofensivos. A RedeTV! descumpriu a ordem judicial e, por isso, teve seu sinal cortado, permanecendo fora do ar por 24 horas. Para Barbosa, a desobediência da emissora escancara o cenário dos meios de comunicação no Brasil: “O desrespeito à lei é sistemático, como se fosse opcional e as empresas estivessem acima dela”. O fato de o canal ter passado um dia inteiro fora do ar virou notícia e, para ter o sinal restabelecido, os proprietários da RedeTV! tiveram que assinar um termo de ajustamento de conduta prevendo a veiculação de 30 programas, a serem indicados por organizações de direitos humanos, em substituição ao Tardes Quentes. “Foram 30 edições do 'Direitos de Resposta', nome que faz trocadilho com a questão do direito de resposta e a luta pelos direitos que consideramos atacados pela emissora”, explica. “O programa reuniu especialistas e representantes de movimentos sociais para discutir um tema a cada edição, sendo que quase toda a equipe, da apresentadora aos roteiristas, era voluntária”. Além disso, a jornalista também lembra que foi lançado um chamado público informando o caso e fazendo um convite para que os cidadãos enviassem vídeos relacionados aos assuntos debatidos no programa. “Em 15, dias, recebemos mais de 400 colaborações”, lembra. “Usávamos um blog bastante simples para nos comunicarmos, já que as redes sociais ainda não eram tão populares em 2005”. Na avaliação de Bia Barbosa, os resultados foram extremamente positivos: a audiência média do Direitos de Resposta era equivalente à do programa de João Kléber, chegando até a superá-la. “Outra vitória foi termos mostrado que é possível falar de direitos da população, inclusive do direito de resposta, de forma atrativa ao público”, acrescenta. Os próximos capítulos Apesar do PL do Direito de Resposta regulamentar o artigo da Constituição que garante ao ofendido o direito de se defender, há ainda alguns obstáculos a serem superados. De acordo com a deputada Luciana Santos, uma das emendas que serão votadas juntas ao projeto defende interesses de empresas como a Rede Globo, propondo que o direito de resposta seja praticado por um terceiro no caso do rádio e da televisão – ou seja, um jornalista da empresa concederia a resposta publicamente, e não o ofendido. Já o direito de resposta em nome de grupos sociais, como no caso do programa Direitos de Resposta, que substituiu e igualou a audiência do Tardes Quentes, na RedeTV!, não aparece no Projeto de Lei do senador Roberto Requião. Para Bia Barbosa, porém, a prioridade é que ele seja aprovado de forma a garantir, de uma vez por todas, o direito de resposta. “Depois, sim, devemos aprimorá-lo a fim de ampliar a lei”. Fruto do esforço de diversas entidades que compõem o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), o Projeto de Lei da Mídia Democrática , engloba, entre diversas propostas para a promoção da democracia na comunicação, a questão do Direito de Resposta – incluindo, em sua proposição, o direito de resposta coletivo. O PL é de Iniciativa Popular, ou seja, necessita cerca de 1,3 milhão de assinaturas para ser encaminhado ao Congresso Nacional, e serve como instrumento de pressão por parte das organizações que lutam pela democratização da comunicação no país.