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Um mangá sobre como o capitalismo selvagem explora trabalhadores até em alto-mar

Adaptação de romance de 1929 que levou seu autor à tortura e à morte expõe as condições miseráveis dos marinheiros no Japão

Ilustrações: imagens do gibi Kanikosen - O Navio dos Homens
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PIU GOMES

Quando lançou o romance Kanikosen – O Navio dos Homens em 1929, Takiji Kobayashi cristalizou seu envolvimento com a literatura proletária japonesa. E o fez de maneira tão brilhante, com tanto sucesso, que pagou caro por isso. Teve de entrar para a clandestinidade e foi perseguido pela Polícia Especial do Japão. Capturado, foi torturado e morto.

Kobayashi entrou para um banco onde iniciou a extensa pesquisa que originou o romance, entre leituras, visitas e entrevistas com pescadores. Após seis meses escrevendo, estava pronto o sombrio retrato sobre a cruel exploração em um navio-fábrica

Em bela licença poética, o artista Go Fujio abre sua versão da obra reproduzindo a foto em que familiares e amigos velam seu corpo enquanto conversam sobre as razões da brutalidade do Estado. É quando descobrimos o quanto escrever um livro pode ser perigoso, e por quê. Kobayashi nasceu na província e trabalhava na fábrica de pães do tio quando começou seus estudos na Escola Superior de Comércio em Otaru, que formou várias personalidades atuantes em diversas áreas, não apenas nos negócios. Entrou para um banco em cujos arquivos de jornal iniciou a extensa pesquisa que originou o romance.

Foram um ano e sete meses entre leitura de matérias, visitas ao porto de Hakodate e entrevistas com pescadores. Após seis meses escrevendo, estava pronto o  sombrio retrato sobre a cruel exploração dos marinheiros-operários de um navio-fábrica, responsável pela pesca e enlatamento de caranguejos em mares perigosos.

Não à toa, o primeiro diálogo nos convida para o pior: “Aí, hora de partir para o inferno!”. No início da trama, se opõem opulência para a elite e insalubridade para o proletariado. Através de conversas entre os operários no porão, ou “latrina”, vêm à tona suas terríveis condições de vida: morando em vilas miseráveis, buscando trabalho em minas de carvão sacudidas por explosões de gás, ou na construção de portos e ferrovias, como mencionado em outra passagem, mas sempre expostos à degradação e até mesmo ao ataque de cães selvagens.

O conceito “navio-fábrica” permitia aos empresários não obedecerem às leis de navegação, já que não se tratavam de embarcações, nem tampouco aplicarem a legislação das fábricas tradicionais, já que não estavam em terra firme. Um paradoxo sem regras, a essência e a origem da exploração do homem pelo homem.

A ganância pelo lucro, personificada pelo superintendente Asakawa, implica numa brutalidade cada vez maior, onde surras de bastão garantem o cumprimento da absurda carga horária. Os kawasakis, barcos-auxiliares que pescavam o caranguejo, eram mais importantes que os marinheiros obrigados a enfrentar perigosas ondas para cumprir sua tarefa. A presença de um navio de guerra como escolta permitia tanto o desrespeito às fronteiras marítimas como garantia à repressão contra os operários.

Apesar das ameaças de marcas de ferro quente e tiros de pistola, os operários se insurgem, numa tomada de consciência que justifica o conceito de literatura proletária: é a massa oprimida que se movimenta e conduz o processo, sem a presença de heróis –as vozes individuais que se sobressaem ecoam os murmúrios coletivos.

É fato: em 1926, o caranguejeiro Chichibu Maru naufragou após ter tido seu pedido de socorro ignorado pelos outros navios que navegavam na mesma área que ele. As 161 vítimas fatais formavam mais da metade da tripulação

Um dos eventos que contribuem para a rebelião é baseado em um fato real: em 1926, o caranguejeiro Chichibu Maru naufragou após ter tido seu pedido de socorro ignorado pelos outros navios que navegavam na mesma área que ele. As 161 vítimas fatais formavam mais da metade da tripulação.

A arte de Go Fujio é vibrante, com a decupagem vigorosa do mangá, aliado ao traço ora caricato, ora realista para os personagens. O uso de retículas e hachuras traz densidade aos cenários. As linhas de movimento aparecem mais quando a narrativa contempla o confronto e as cenas de ação se tornam mais frequentes. Ele mantém as símiles exageradas do original e incorpora fotos do livro “Memórias dos Barcos do Norte”.

No posfácio, Teru Shimamura avisa que “o capitalismo que criou aquelas situações persiste até hoje, agora globalizado, sem mudanças fundamentais”. As denúncias de trabalho similar à escravidão pipocam de Bangladesh a Xinjiang, atingindo corporações gigantescas, como Apple, Nike, Adidas. Heineken e Ambev foram acusadas no Brasil, onde São Paulo apresenta o maior número de casos. E as reformas trabalhistas neoliberais também fazem o trabalhador perder cada vez mais direitos, como aconteceu por aqui a partir do golpe de 2016, levando muitos à depressão e até mesmo ao suicídio.

Em 2022, o brasileiro tem chance de lutar contra isso usando uma poderosa arma: o voto. Para derrubar tanto o desgoverno, como para escolher um parlamento que olhe para os que lutam, ao invés de mirar os que já têm –e sempre querem mais, a qualquer custo.

Kanikosen - O Navio dos Homens

AUTOR: Go Fujio e Takiji Kobayashi

EDITORA VENETA, 192 págs., R$ 64,90

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