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O dia em que o jornalista Gay Talese deu uma “barriga”

(E os colegas na midiazona passaram pano dizendo que, se era uma "cascata", era uma cascata bem escrita)

Gay Talese no documentário. Foto: reprodução Netflix
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CYNARA MENEZES

Se o jornalismo fosse uma monarquia, o norte-americano Gay Talese seria o rei. No mínimo, o príncipe do jornalismo. Eu vi com meus próprios olhos e ouvi com meus próprios ouvidos Talese ser reverenciado por colegas como Deus.

A sensação de que Gay Talese, entre todos nós, é o único a possuir sangue azul correndo em suas veias, talvez seja também um efeito subliminar daquele terno azul cobalto que lhe cai majestosamente bem –da mesma forma que outro "nobre" da profissão, Tom Wolfe, envergava como ninguém um paletó branco.

Talese é um ícone da elegância desde que nasceu: mal começou a andar e já foi enfiado em ternos bem cortados de três peças pelo pai, Joseph, um alfaiate italiano que migrou para os EUA. Quantos jornalistas, em geral de origem de classe média ou baixa, podem se gabar do mesmo? Como se não bastasse o estilo no vestir, Gay Talese é um mestre em contar histórias reais. É dele a frase mais célebre da história do jornalismo dito "literário" (termo que ele sempre rejeitou): "Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem gasolina –só que pior", do ultra-incensado artigo Sinatra Está Resfriadopublicado pela revista Esquire em abril de 1966. Frequentemente apontado como a melhor história de não-ficção do século 20, o texto é indicado até hoje nas melhores faculdades do ramo.

Gay Talese com os pais quando criança. Foto: reprodução

Talese, por onde quer que se olhe, é um gênio, e sabe disso. Se jornalistas, sobretudo os homens, carregam a fama de "vaidosos", em Gay Talese a vaidade é visivelmente elevada aos píncaros. As paredes da sua charmosa casinha de quatro andares em Nova York estão repletas de retratos seus, de capas de revista com fotos suas, de fotos dele ao lado de celebridades, e dois displays de publicidade com a imagem dele em cartão, em tamanho natural, estão ao alcance da vista de sua mesa de trabalho.

Eu não julgo. É possível que se eu tivesse sido capa de tantas revistas também penduraria nas paredes. Mas uma pessoa para passar os dias olhando para a própria cara só mesmo tendo um orgulho de si mesma acima de qualquer recato.

Essa é a primeira coisa que captura a atenção do espectador em Voyeur, documentário de 2017 da Netflix que acompanha a controvérsia ao redor de O Voyeur, o último livro de Talese, atualmente com 90 anos. Um trecho foi publicado com exclusividade pela revista New Yorker em abril de 2016, exatos 50 anos após o Sinatra gripado, sob o título The Voyeur's Motel

Talese aos 9 anos. Reprodução Netflix

No artigo, Talese contou que havia conhecido o protagonista do relato 30 anos antes, em janeiro de 1980, quando recebeu uma carta escrita à mão de um homem chamado Gerald Foos, que garantia ter informações importantes a dar para um futuro livro: havia comprado um motel em Aurora, no Colorado, com a intenção de satisfazer suas "tendências voyeurísticas" espionando os hóspedes por uma abertura no teto, o que teria feito durante quase três décadas. Ele só autorizou Talese a publicar a história a partir de 2013, quando já se considerava inimputável.

Em seus diários, Foos, que explicava o hábito com a justificativa anedótica de que pretendia fazer um "estudo sociológico" como os do pioneiro sexólogo Alfred Kinsey, mantinha anotadas "estatísticas" sobre os espionados: altura, raça, se tinham transado ou não e como foi etc.. Mas confessava que também se masturbava ao assistir às cenas. O jornalista admite que, se não tivesse ido ele mesmo ao sótão e verificado o que contava Foos, teria duvidado da palavra dele.

"Ao longo das décadas desde que nos encontramos, em 1980, notei várias inconsistências em sua história: por exemplo, as primeiras anotações em seu 'diário do voyeur' estão datadas como 1966, mas no registro de venda da Manor House (o motel), que obtive recentemente, a venda está registrada em 1969", escreve Talese. "E há outras datas nas anotações que não batem. Não tenho dúvida de que Foos era um voyeur épico, mas ele algumas vezes foi um narrador inacurado e não confiável. Não posso garantir cada detalhe que ele conta em seu manuscrito."

Quando o trecho do livro foi publicado na New Yorker foram apontadas as primeiras discrepâncias. As datas anotadas por Foos simplesmente não batiam com a realidade. Além do fato de, como reconheceu Talese, o motel só ter sido comprado em 1969 e não em 1966, durante oito anos, entre 1980 e 1988, ele nem sequer pertenceu ao voyeur Gerald Floos: havia sido vendido a uma outra pessoa, Earl Ballard.

Uma das histórias narradas por Foos a Talese, a de que presenciou um assassinato no motel, trouxe perguntas incômodas ao jornalista: por que ele não informou às autoridades sobre um crime? Acontece que Paul Farhi, o repórter do Washington Post que apontou as graves inconsistências no relato, descobriu que não existe nenhum registro policial sobre a tal morte. Ao ser confrontado com tantos aparentes erros, a primeira reação de Gay Talese foi desautorizar a própria obra. "Eu não devia ter acreditado em nem uma palavra do que ele me contou. Não vou promover esse livro. Como posso promovê-lo quando sua credibilidade foi pelo ralo?", disse.

No dia seguinte, o jornalista mudou de ideia, acusando Farhi de ter "distorcido" suas palavras, e anunciou que começaria a promover o livro imediatamente. "O Washington Post estava errado", disse Talese a Seth Meyers no Late Show, em julho de 2016. "Tenho 84 anos, mas desde que comecei, aos 20, era um repórter cuidadoso e ainda sou." Talese contou ter falado com o novo proprietário, que teria lhe dito que permitia que Foos continuasse espionando os hóspedes –já ao Post, Ballard não só negou ter dado as chaves a Foos como garantiu que tinha mandado fechar as aberturas.

Jornalisticamente falando, a crítica mais séria ao trabalho de Talese em O Voyeur foi à falta de checagem das informações: ele não checou nada e se limitou a apenas reproduzir tudo o que a fonte lhe passara em primeira mão –de certa forma similar ao que os repórteres brasileiros fizeram na Lava-Jato, sendo que, no caso deles, sem a parte do talento para a narrativa. Mas a condescendência de Meyers com aquela lenda do jornalismo pilhada em uma apuração ruim daria a tônica de todas as reações que viriam no mainstream da profissão.

David Remnick, editor da New Yorker, respondeu com ironia, dizendo que haver erros factuais num artigo do gênero "não eram um assunto, assim, de segurança nacional". No britânico The Guardian, o crítico Elon Green sapecou já no título que "Talese sobreviverá ao escândalo" de seu livro mais recente. "Não acho que um trabalho menor negue, ou mesmo diminua, um grande trabalho. Então, muito embora eu desejasse que Talese não tivesse cometido esse erro, duvido que isso prejudique seu legado."

O crítico do New York Times, Dwight Garner, afirmou que o fascínio do livro torna os erros factuais desimportantes. "Não tenho muita certeza de que consigo fazer uma defesa ética irrefutável do jornalismo de Talese em O Voyeur, mas consigo fazer uma defesa literária", justificou. "Este livro mudou completamente minha postura de leitor. É um livro estranho, melancólico, moralmente complexo, rude, com frequência terrível e às vezes sombriamente divertido, um livro que contém uma espécie de feitiço."

Como o “furo” é o sonho de todo jornalista, a “barriga”, a informação errada, é o pesadelo. Não deixa de ser reconfortante saber que até um craque como Gay Talese pode cometer uma barriga. Mas é frustrante perceber que à realeza é permitido tudo, até não se preocupar com a veracidade dos fatos

 

"O que Foos ofereceu foi uma história que parecia boa demais para não ser contada. O fato de, no final das contas, Talese aparentemente não ter analisado os detalhes perto o suficiente, pode ter menos a ver com suas falhas, ou as do jornalismo, do que com seu desejo de acreditar", passou pano David L. Ulin, no Los Angeles Times

A vida inteira Gay Talese torceu o nariz para a ficção. Sempre fez questão de dizer que o seu lance é escrever histórias reais. "A não-ficção não tem liberdade para com os fatos nem deveria ter", ensinou certa vez. Mas O Voyeur está, de acordo com as regras básicas da reportagem, muito mais próximo da ficção do que da não-ficção. E sem assumir isso. Partes extensas do livro são dedicadas a reproduzir os "diários" de Foos, sobre os quais o próprio Talese admitia dúvidas quanto à veracidade, como se o que o jornalista fez, no fundo, foi se apropriar dos relatos de um ficcionista.

Tem uma parte realmente difícil de acreditar no livro e que é reconstituída no documentário: Gay Talese está deitado no sótão ao lado do dono do motel, observando um dos quartos pela abertura no teto, quando inadvertidamente a gravata do jornalista passa pela fresta e fica pendurada, sob o risco de ser vista caso os hóspedes olhassem para cima. Soa como "cascata" (mentira, no jargão jornalístico) e tem tudo para ser cascata, como quase tudo ali. Para piorar, o momento em que o jornalista teria vivido esta cena, em 1980, foi justamente quando o motel tinha sido vendido.

Assim como o "furo", a informação exclusiva, é o sonho de todo jornalista, a "barriga", a informação errada, mal apurada, é o pesadelo. Em alguns veículos, a barriga, a depender da importância da notícia, costuma gerar demissão imediata do responsável. Não deixa de ser reconfortante saber que até um craque como Gay Talese pode cometer uma barriga. Mas é frustrante perceber que à realeza é permitido tudo, até não se preocupar com a veracidade numa profissão cujo maior e mais importante desafio é perseguir a verdade. Ou isso só vale para a plebe que rala no dia a dia das redações?

Em tempos de fake news, é uma péssima lição que o mestre deixa para os jovens repórteres de hoje e do futuro.