CYNARA MENEZES
Os países nórdicos têm as menores taxas de violência do mundo. Na lista dos países mais pacíficos do site Statista, a Islândia aparece em primeiro lugar; a Dinamarca em terceiro; a Finlândia em 11º; a Suécia em 12º e a Noruega em 13º. É difícil imaginar a razão pela qual países tão tranquilos se tornaram a origem de algumas das mais brilhantes séries de suspense dos canais de streaming. Se lá praticamente não acontece crime (na Islândia já houve ano com homicídio zero), de onde vem a capacidade de criar tramas policiais tão engenhosas? Do tédio?
Os escandinavos são tão prolíficos na criação de livros, filmes e séries de suspense que passaram a nomear um gênero, "nordic noir", "scandinavian noir" ou "scandi noir". A explosão do noir nórdico começa na literatura no final da década de 1990, com nomes como os suecos Stieg Larsson (da série Millenium) e Henning Mankel (criador do detetive Kurt Wallander). Na televisão, uma das primeiras séries ao explorar o filão foi a dinamarquesa The Killing (Forbrydelsen), de 2007, atualmente fora de cartaz nos canais de streaming disponíveis no Brasil.
Há algumas características que diferenciam o noir escandinavo das séries de suspense norte-americanas. Em primeiro lugar, sempre abordam, ao mesmo tempo que crimes intrincados, questões sociais como a agressão ao meio ambiente, tráfico de drogas, especulação imobiliária, corrupção na política... É um alívio para os fãs do gênero saber que a figura do policial do FBI se intrometendo nas investigações nunca vai aparecer, um clichê das produções hollywoodianas que torna tudo um tanto previsível.
Nas produções escandinavas há violência também, claro, e bem pesada, com temas como abuso sexual na infância, prostituição e abuso de drogas na juventude. Mas algumas vezes os policiais nem sequer usam armas, caso dos policiais islandeses –a Islândia é tão tranquila que quando acontece um assassinato por lá abala o país inteiro. Os protagonistas das tramas (e das investigações) são sempre uma dupla, um homem e uma mulher, e varia, independentemente de gênero, quem estará no comando: às vezes é o homem, às vezes é a mulher.
As séries nórdicas têm uma vantagem extra para os brasileiros: por serem tão diferentes do nosso cotidiano, fazem a gente esquecer, pelo menos por instantes, o terror do bolsonarismo. Distraem a cabeça dos crimes reais que acontecem todos os dias desde que a extrema direita chegou ao poder
Os policiais são muito bem preparados e equipados, mas ao mesmo tempo são gente comum do interior ou vivendo no interior, com seus dramas humanos, filhos adolescentes com problemas, divórcios doloridos, doenças. As paisagens belas e desoladas dos países escandinavos, com seus fiordes e imensidões brancas e geladas ornam muito bem com histórias de suspense. Ajudam a dar calafrios.
As séries nórdicas têm uma vantagem extra para os brasileiros: por serem tão diferentes do nosso cotidiano, fazem a gente esquecer, pelo menos por instantes, o terror do bolsonarismo. Distraem um pouco a cabeça dos crimes reais que acontecem todos os dias desde que a extrema direita chegou ao poder em nosso país. Também nos convidam a pensar como a nossa polícia e nosso sistema prisional poderiam ser diferentes.
Essa lista pode ser acrescida de novos títulos a qualquer momento (os links para os canais de streaming estão no título das mini-resenhas).
1 – Katla (Islândia)
Após um ano da erupção do vulcão Katla, a aldeia de Vík ainda está envolta em fuligem quando uma mulher é encontrada, toda coberta de cinzas. Ela é estranhamente parecida com outra que havia deixado a cidade 20 anos atrás, mas tem a aparência de uma jovem de 20 anos, mesma idade de quando a primeira partiu. A peculiar trama desta série mistura crime, ficção científica e sobrenatural, explorando a ideia do duplo (o doppelgänger das lendas nórdicas e germânicas), além de uma nem tão sutil crítica aos efeitos do aquecimento global. Netflix.
2 – Case (Islândia)
Uma bailarina é encontrada enforcada no palco de um teatro em Reiquiavique. O aparente suicídio pode ser tão aparente quanto a normalidade das famílias do lugar. Um advogado decadente e alcoólatra toma para si a missão de resolver o mistério e vamos descobrindo que, exatamente como ele, ali ninguém é perfeito. Como em toda série nórdica, as tensões se alternam entre o trabalho de investigação criminal e os problemas que tanto o advogado quanto a policial que investiga o caso enfrentam na vida privada. Netflix.
3 – O Homem das Castanhas (Dinamarca) Um pequeno bonequinho feito com galhos e cabeça de castanha é a pista deixada pelo autor dos assassinatos que estão ocorrendo num até então tranquilo subúrbio da capital, Copenhague. O que ele quer dizer com isso? Passado e presente se alternam na história até ser desvendado o segredo macabro por trás dos sinistros bonequinhos. A série foi produzida a partir do romance homônimo de Soren Sveistrup, também autor de The Killing (Forbrydelsen), um dos maiores sucessos do scandi noir e que infelizmente não está mais disponível no Brasil em streaming, apenas o remake estadunidense (Star+). Netflix.
4 – Departamento Q (Dinamarca) Uma das características das séries dinamarquesas é ter detetives antissociais, esquisitões, à frente das investigações. Na série de filmes Departamento Q (são quatro, só há disponíveis no Brasil os três últimos), baseada no best seller de Jussi Adler-Olsen, isso é elevado aos píncaros. O detetive Carl Mørck parece um robô, sobretudo se comparado ao parceiro Assad (Fares Fares), um grandalhão de origem síria que é só emoção, e à divertida secretária Rose (Joanne Louise Schmidt, que vive a primeira-ministra da Dinamarca na nova temporada de Borgen). O último filme da série, Em Busca de Vingança, baseado numa história real, é simplesmente espetacular. Prime Vídeo.
5 – Borderliner (Noruega)
Após testemunhar contra um colega, o detetive Nikolai, que vive em Oslo, decide sair de licença e parte para sua cidade natal na fronteira com a Suécia, onde acaba entrando na investigação de um suicídio. O que ele será capaz de fazer para proteger seu irmão mais novo, também policial, que parece estar envolvido no crime? Este tipo de dilema moral do policial entre a vida privada e o trabalho, onde se vê obrigado a escolher entre a ética e as relações pessoais, é bastante frequente nas tramas nórdicas –assim como o final surpreendente. Netflix.
6 – Bordertown (Finlândia)
O mais estranho dos estranhos detetives destas séries escandinavas, Kari Sorjonen (Ville Virtanen) é diagnosticado com síndrome de Asperger, o que nos faz pensar: não estariam muitos dos detetives mais famosos no espectro? Em relação a Sherlock Holmes, por exemplo, esta é uma especulação recorrente. O fato é que Sorjonen (o nome original da série em finlandês) tem habilidades enormes para decifrar crimes e as mentes perversas detrás deles, e pouca ou nenhuma para se relacionar com as pessoas. Para quem assistiu CSI, o original, há algumas similitudes –e não estaria o antissocial e extremamente inteligente Gil Grissom também no espectro? Mas na série norte-americana a vida dos policiais se resume ao local de trabalho, o que raramente ocorre numa produção nórdica. A série é imensa (tem três temporadas) e recentemente foi lançado também um longa-metragem, Bordertown: A Eliminação. Netflix.
7 – Trapped (Islândia)
Ninguém sai, ninguém entra: os habitantes de uma cidade pequena estão presos num pequeno vilarejo da Islândia por conta de uma tempestade de neve. O policial Andri (Ólafur Darri Ólafsson) parece de certa forma atolado também, separado da mulher, a quem ainda ama, e vivendo com as duas filhas na casa dos sogros. E então aparece o tronco de uma pessoa assassinada... Como sempre, um detetive taciturno, fora dos padrões, estrela esta série excelente na primeira temporada, mas que perde o ritmo na segunda. Interessante como os islandeses tomam café, a qualquer hora do dia e da noite –basicamente matam o frio tomando café. Não por acaso, a Islândia é um dos paises onde mais se consome café no mundo (os outros são todos nórdicos).
8 – Deadwind (Finlândia)
O perfil durão e antissocial dos protagonistas das séries de suspense escandinavas não se restringe aos homens. Em Deadwind, a detetive Sofia Karppi (Pihla Viitala) não está muito a fim de papo e sim de descobrir por que uma moça foi encontrada morta num canteiro de obras e quem a matou. Sofia é tão obstinada que retornou ao trabalho dois meses após ter perdido o marido, e está dividida entre os dramas da maternidade solo, tendo que pagar a enteada adolescente para que cuide de seu filho pequeno, e desvendar um assassinato ligado à especulação imobiliária em Helsinque. Uma nota à parte é a espantosa semelhança sonora do finlandês com o japonês. Já repararam? E não é que existem conexões entre os dois idiomas?
9 – O assassino de Valhalla (Islândia)
A pérfida trama desta série islandesa tem como cenário uma instituição para jovens com problemas familiares, Valhalla. A detetive Kata (Nina Dögg Filippusdóttir), por sua vez, também está à volta com os próprios dramas gerados pelo excesso de trabalho e a culpa por estar ausente como mãe de um adolescente. Ser ética ou proteger a cria é o dilema que se desenha diante de Kata. Seu parceiro, Arnar (Björn Thors), um islandês que vive na Noruega, é outro destes estranhos detetives nórdicos que pouco falam ou mostram emoções, mas sua história de vida também está ligada ao que ocorreu em Valhalla. Netflix.
10 – Areia Movediça (Suécia)
Adaptado do livro homônimo da sueca Malin Persson Giolito, a série explora um crime que, ao contrário dos EUA, raras vezes ocorreu nos países nórdicos: um massacre numa escola. A adolescente Maja Norberg (Hanna Ardéhn) é encontrada ensaguentada na cena do crime, mas não se lembra do que aconteceu. Teria Maja ajudado o namorado a matar os colegas? Além de responder esta pergunta, a série é uma crítica aos valores dos jovens de classe alta da Suécia e à condescendência da sociedade com os mais ricos: todo mundo sabe que o rapaz é agressivo, mas o fato de a família dele ser milionária faz com que os pais de Maja não se preocupem a mínima com o que a menina anda fazendo.