O pânico da branquitude diante da liderança negra
Candidato a reitor da UFSB, Richard Santos denuncia a reação sistêmica da branquitude diante da presença negra em espaços de comando
RICHARD SANTOS*
Sou Richard Santos, também conhecido como Big Richard, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Pós doutor em cultura e sociedade pela UFBA, Doutor em Ciências Sociais pela UNB, pesquisador e escritor. Em 2023, recebi o título de cidadão de Itabuna, pela câmara de vereadores local. Mas antes dos títulos e das titulações, sou um homem negro que aprendeu, desde cedo, que o saber nasce também da experiência, da cultura e da rua. Fui moldado pela palavra falada do Hip Hop, pela pedagogia dos movimentos sociais e pela escuta das comunidades. É desse lugar — de quem viveu o Brasil real antes de adentrar o Brasil acadêmico — que falo sobre o Contrato Racial, conceito formulado por Charles W. Mills para explicar como as sociedades se organizam a partir de um pacto tácito que reserva poder, prestígio e legitimidade a determinados corpos: os brancos.
Recentemente, o país viu o caso da professora Érica Cristina, doutora em Literatura, cuja posse na USP foi anulada mesmo após ter sido aprovada em primeiro lugar. O episódio, revelado pelo O Globo (16/10/2025), não é um desvio da norma — é a norma em funcionamento. É o contrato racial em ato: a reação sistêmica da branquitude diante da presença negra em espaços de comando. Quando o corpo negro se aproxima do poder, o pacto se agita. Ele precisa restaurar sua “ordem natural”, aquela em que negros são tolerados como exceção, nunca como regra.
Para a branquitude, pouco importam meus títulos de pós-doutor, doutor, os livros publicados no Brasil e no exterior, ou minha contribuição acadêmica e cultural. O que a estrutura enxerga não é a legitimidade do saber, mas a transgressão da cor
O Contrato Racial opera silenciosamente, naturalizando o privilégio. Ele se manifesta na dúvida que recai sobre nossas trajetórias, na desconfiança institucional, na microagressão disfarçada de protocolo. E, para a branquitude, pouco importam meus títulos de pós-doutor, doutor, os livros publicados no Brasil e no exterior, ou minha contribuição acadêmica e cultural. O que a estrutura enxerga não é a legitimidade do saber, mas a transgressão da cor. É o que Clóvis Moura chamou de barragens de peneiramento: mecanismos sutis e eficazes criados para impedir o avanço do negro nas esferas de poder e prestígio.
As barragens de peneiramento funcionam como filtros simbólicos. Deixam passar o talento, mas não a autonomia; permitem a presença, mas bloqueiam a liderança. Moura explica que a sociedade brasileira cria “válvulas de escape” para absorver a energia da rebeldia negra sem jamais transformar sua estrutura racial. Assim, o negro pode ser exemplo, mas não referência; pode ser reconhecido, mas não recompensado. Pode ser professor, mas não reitor. Pode ser convidado, mas não decisor. É um modelo de contenção — e as universidades públicas são, paradoxalmente, seus laboratórios mais sofisticados.
A professora Bárbara Carine, em E eu, não sou eu uma intelectual?, escreve sobre o cotidiano de mulheres negras que vivem sob essa mesma peneira: a necessidade constante de provar sua competência e justificar sua presença. A pesquisadora Carla Akotirene, por sua vez, descreve o medo de abandonar o cargo público para dedicar-se integralmente à pesquisa, pois o ambiente universitário continua sendo um território inseguro para quem carrega na pele o estigma da cor. Ambas, em suas trajetórias, revelam que o contrato racial não é metáfora — é política concreta de exclusão.
O contrato racial está em crise. Há rachaduras visíveis. O incômodo que a presença negra provoca é o sinal de que o pacto se desmancha. E, como toda estrutura em colapso, ele reage — tenta manchar reputações, fabricar ruídos, lançar suspeitas. Faz parte do desespero da branquitude perder o monopólio da narrativa e do comando
Eu mesmo, na disputa pela reitoria da UFSB, tenho sentido essas forças. Sou o único candidato negro retinto entre as chapas, e a reação é previsível: desconfiança, microagressões, campanhas sutis de deslegitimação. Criam narrativas para tentar me enquadrar: ora sou “radical demais”, ora “moderado demais”; ora “militante”, ora “aliançado”. E bastou dialogar com prefeitos de diferentes partidos — um gesto básico de um gestor público — para ser acusado de “alinhamento à direita”. Para o pacto racial, o negro não pode negociar. Ele deve permanecer em resistência, nunca em direção. O negro que governa desorganiza o contrato.
Como mostra Lourenço Cardoso em O Branco Ante a Rebeldia do Desejo, a branquitude teme o negro que deseja, que decide, que se move fora do script. A branquitude tolera o negro dócil, institucionalizado, “decorativo” — aquele que serve para a foto. Mas o negro que age politicamente, que deseja autonomia e autoridade, torna-se insuportável. Por isso, o poder branco recorre à desconfiança, ao isolamento e à deslegitimação — as armas modernas do racismo estrutural.
E há, dentro da própria universidade, o reforço simbólico dessa hierarquia. Colegas que se autoproclamam “ancestrais da educação” reivindicam o direito de governar porque acumulam trinta anos de vida acadêmica — e apenas acadêmica. Mas liderança não é cronologia. Liderar exige vivência, escuta e coragem para atravessar o conflito. A branquitude confunde tempo com sabedoria porque, em sua lógica, o saber é propriedade, não experiência. Eu venho de outro lugar: o da prática, da rua, da favela, da cultura que forma consciências. Fundar a Associação Hip Hop Atitude Consciente (ATICON), participar do CEAP, do AfroReggae, da Cooperifa, da CUFA, não foram atos artísticos — foram atos de política pública, de pedagogia e de reparação social.
As universidades, ao reproduzirem as barragens de peneiramento, cumprem o papel histórico de conter a ascensão plena dos sujeitos negros. Permitem nossa entrada para reafirmar a imagem da democracia racial, mas bloqueiam o acesso ao comando, ao orçamento, à formulação. O mesmo país que exalta Zumbi e Dandara no 20 de Novembro ainda questiona se Érica Cristina merece ser professora da USP; ainda pergunta se um homem negro pode ser reitor; ainda duvida se mulheres negras são intelectuais.
Mas o contrato racial está em crise. Há rachaduras visíveis. O incômodo que a presença negra provoca é o sinal de que o pacto se desmancha. E, como toda estrutura em colapso, ele reage — tenta manchar reputações, fabricar ruídos, lançar suspeitas. Faz parte do desespero da branquitude perder o monopólio da narrativa e do comando. O que estamos fazendo, cada um à sua maneira — Érica, Bárbara, Carla, eu —, é rasurar o contrato com nossas trajetórias. Estamos transformando o silêncio imposto em discurso público, a desconfiança em projeto coletivo, a resistência em gestão.
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Defendo uma UFSB mais viva — viva porque plural, porque mestiça, porque antirracista. Uma universidade que não tema o diálogo com o território, que fale com os 60 municípios da sua abrangência, que olhe para o povo e devolva em forma de saber, cultura e inclusão. A universidade viva é aquela que rompe as barragens de peneiramento e deixa fluir o rio inteiro do conhecimento, sem filtros raciais, sem muros ideológicos, sem medo da diferença.
O que fazemos hoje é mais que uma disputa por cargos: é uma disputa por significados. Estamos dizendo que a inteligência negra não precisa de permissão para existir, que o saber das periferias é epistemologia legítima e que a autoridade acadêmica pode ter pele escura e voz firme.
O poder branco se desespera, mas já não é mais onipotente. A história não volta atrás. E se o contrato racial insiste em nos peneirar, o que fazemos é entupir suas barragens com pensamento, com arte, com liderança, com coragem. Porque não há peneira capaz de conter a correnteza da liberdade.
* Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), pesquisador, escritor e autor de Maioria Minorizada – Um Dispositivo Analítico de Racialidade (Telha, 2020); Branquitude e Televisão – A Nova África (?) na TV Pública (Telha, 2021); Mídia, Colonialismo e Imperialismo Cultural (Telha, 2023); e Comunicação em Disputa: A Luta pelo Imaginário da América Latina na Era Trump (Telha, 2025). Diretor Regional Nordeste da INTERCOM e membro da diretoria da ABTU.