A “síndrome da escolha difícil” que afeta a esquerda. Ou: não, Biden não é igual a Trump

"My boy": Trump recebe visita de Bolsonaro em março. Foto: Alan Santos/PR
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CYNARA MENEZES

Parte da esquerda brasileira parece afetada pela "síndrome da escolha muito difícil". Assim como o Estadão fez no famigerado editorial de 2018 para convencer eleitores incautos de que eleger Fernando Haddad era a mesma coisa que eleger Jair Bolsonaro, vejo muita gente repetindo que Joe Biden é igual a Donald Trump. Não, não é. Em primeiro lugar porque o presidente republicano é fascista, e o candidato democrata, não.

Biden, como todo presidente norte-americano, é colonialista, imperialista, senhor das guerras? Sem dúvida. Mas, além de ser tudo isso, Trump também é supremacista branco, anti-direitos LGBTQ, anti-aborto, negacionista da pandemia, do câmbio climático e das ditaduras militares na América do Sul. Biden, não. Inclusive entregou para a presidenta Dilma Rousseff documentos que comprovam as torturas que o chapa de Trump, Bolsonaro, nega haver existido no período.

Assim como o Estadão fez em 2018 para convencer os eleitores de que eleger Haddad era a mesma coisa que eleger Bolsonaro, vejo muita gente repetindo que Biden é igual a Trump. Não, não é. Em primeiro lugar porque o republicano é fascista, e o democrata, não

A BBC Brasil lembrou que, em junho de 2014, Biden, então vice-presidente de Barack Obama, entregou a Dilma um HD com 43 documentos produzidos por autoridades norte-americanas entre os anos de 1967 e 1977. "A partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão, os relatórios detalhavam informações sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil", contou a repórter Mariana Sanches. Os documentos foram incorporados ao relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro daquele ano.

É bem verdade que Obama se omitiu publicamente no golpe contra Dilma em 2016, ao mesmo tempo que sua polícia federal, o FBI, atuava por baixo dos panos na golpista Lava-Jato. Também é verdade que, sendo democrata ou republicano, o presidente dos EUA promove guerras. Mas nem toda guerra envolve armas. Na guerra "cultural" que estamos travando contra o fascismo, Biden supera Trump em todos os quesitos. Em termos de costumes, Trump é igualzinho a Bolsonaro, não a Biden.

O aborto é um exemplo claro disso. Nos EUA, desde o julgamento Roe vs. Wade pela Suprema Corte em 1973, o aborto é legalizado na maior parte dos Estados. Uma das promessas de campanha de Trump em 2016 era justamente reverter Roe vs Wade. Já Biden, embora no passado tenha se pronunciado contrário e até votado em 1982 em favor de que os Estados pudessem rever a decisão, mudou de opinião e agora promete aprovar uma legislação colocando Roe vs. Wade a salvo de uma virtual Corte Suprema conservadora. "Eu apoio Roe. Eu apoio o direito da mulher de escolher sob garantia constitucional. E, falando francamente, sempre apoiarei", disse Biden no ano passado.

https://twitter.com/JoeBiden/status/1313283330486476801

A declaração do democrata de que tornará a decisão "law of the land" para protegê-la foi imediatamente atacada por Trump no twitter. "Uau. Joe Biden tomou uma posição mais liberal em relação a Roe vs. Wade do que a de Elizabeth Warren. Ele também quer enquadrar nossa grande Suprema Corte dos EUA. Isto é o que os democratas farão. Lembrem-se que eles tentam mudar de posição até o fim das eleições. Saia e vote!"

https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1313443879253946370

Embora a decisão de 1973 que permitiu a legalização do aborto nos EUA seja contestada pelos evangélicos conservadores pró-Trump, uma pesquisa recente mostra que ela é apoiada pela ampla maioria dos adultos norte-americanos. Para 66% dos adultos do país, Roe vs. Wade não deve ser revertida pela Suprema Corte, enquanto 29% acham que deve. Entre os eleitores democratas, a vantagem é ainda maior: 86% disseram que a decisão deve ser mantida, contra 12% que deve ser revista. Mesmo entre os republicanos, o placar é apertado: 50% são a favor da reversão e 47% contra.

O tema do aborto ocupa uma posição central hoje na guerra "cultural" entre o progressismo e o conservadorismo fascista. Não por acaso, a Suprema Corte da Polônia ultraconservadora acaba de restringir ainda mais o aborto em um dos países onde já é praticamente impossível interromper uma gestação: agora, é proibido abortar até mesmo nos casos de malformação fetal, que representam 97% dos abortos realizados lá. Pode ter sido um tiro no pé: há 10 dias as mulheres polonesas tomam as ruas do país demonstrando seu descontentamento.

O negacionismo da pandemia também une Trump e Bolsonaro, e não Biden e Trump. Desde o começo, o presidente norte-americano lidou mal com o coronavírus, o que pode lhe custar a reeleição. Como seu capacho brasileiro, Trump desdenhou da doença, atribuiu o vírus à China, deu mau exemplo ao não usar máscara, promoveu um medicamento comprovadamente ineficaz –a cloroquina– e agora também cria bravatas e fake news contra a vacina. Biden fez exatamente o oposto: usou máscara o tempo todo, defendeu a ciência e criticou o adversário por sua postura irresponsável diante da covid-19.

É no plano simbólico que a vitória de Biden sobre Trump representa maior avanço, porque quebra a perna do fascismo justamente no país mais importante em que ele se instalou. Será um efeito dominó: caindo Trump, os mini-fascistinhas que o emulam, como Bolsonaro, também ruirão

No último debate da campanha presidencial, ficou evidente a profunda divergência entre Trump e Biden em relação às mudanças climáticas. Mesmo os EUA sendo o segundo maior emissor de CO2 do mundo, Trump reverteu mais de 160 regras ambientais após assumir o cargo e retirou o país do Acordo de Paris, assinado pelos EUA e 196 nações.

O mesmo tem feito Bolsonaro por aqui: reduziu à metade o número de fiscais do Ibama, desestruturou e aparelhou os órgãos de fiscalização, duvidou de imagens de satélite mostrando o aumento do desmatamento e das queimadas, levando o diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) a se demitir, e mais recentemente tentou acabar com as normas de proteção aos manguezais e restingas. Já Biden promete recolocar os EUA no Acordo de Paris e alcançar 100% de "economia de energia limpa" até 2050.

Se, como vimos, é Bolsonaro que é igual a Trump, como não torcer para que seu parceiro seja colocado para fora da Casa Branca? É no plano simbólico que a vitória de Joe Biden diante de Donald Trump representa maior avanço, porque quebra a perna do fascismo em ascensão justamente no país mais importante em que ele se instalou. Será um efeito dominó: caindo Trump, os mini-fascistinhas que o emulam ao redor do mundo, como Bolsonaro, também ruirão. Será uma mudança de narrativa e de paradigma.

Para Chomsky, Trump é "o maior criminoso da História da humanidade". "Maior do que Hitler, do que Stalin?", perguntou o entrevistador. E Chomsky: "Stalin era um monstro. Mas ele estava tentando destruir a vida humana na Terra?"

A esquerda que está equiparando Biden a Trump precisa cair na real e colocar o combate ao fascismo como prioridade neste momento. Se não querem me ouvir, ouçam Noam Chomsky, em entrevista recente à revista New Yorker. “Nos 350 anos de democracia parlamentar, não houve nada como o que estamos vendo agora em Washington. Um presidente que disse que se não gostar do resultado de uma eleição, ele simplesmente não deixará o cargo", disse o filósofo, para quem o atual presidente dos EUA é "o maior criminoso da História da humanidade".

"Maior do que Hitler, do que Stalin?", perguntou o entrevistador. E Chomsky respondeu: "Stalin era um monstro. Mas ele estava tentando destruir a vida humana organizada na Terra?"