Fake news: a arte de enganar na política (e a de querer ser enganado por ela)

A relação problemática entre política e verdade se deve à capacidade do ser humano de ao mesmo tempo mentir e demandar por enganação

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JEAN WYLLYS

O desejo pelo reconhecimento é o que nos faz humanos. Isto é mais ou menos o que diz o filósofo Platão, no Fedro. Mas ele também sugere que essa característica específica –e fundamento mesmo do ser humano– está acompanhada de outra com dupla expressão: a capacidade de enganar e o desejo de ser enganado. São duas expressões de uma mesma característica que miram a si próprias, como Narciso e seu reflexo na água.

A mutação mais recente da economia capitalista –o neoliberalismo– associada às novas tecnologias da comunicação e da informação (a internet, seus hardwares e softwares: rede de cabos de fibra ótica, satélites, chips, laptops, smartphones, tablets com microfones ultra-sensíveis e câmeras de alta resolução, sites, plataformas digitais e aplicativos) nunca interpelaram tanto essas duas caraterísticas humanas  –principalmente a segunda– quanto neste contexto histórico em que vivemos, sobretudo depois da pandemia de Covid-19.

A capacidade de mentir e a vontade de acreditar em mentiras têm sido, ao longo da história, as ameaças mais graves ao mundo comum. Quem fala a verdade não vigora em parlamentos e com raras exceções chega a governos; está desde sempre ameaçado de ser difamado, preso injustamente, assassinado ou exilado

Se é certo que esses dois fundamentos da humanidade são os responsáveis pelas artes e pelas grandes obras literárias que esta produziu em todas as culturas, não é errado afirmar que ambos também engendram religiões e seitas religiosas e sustentam seus exploradores; e são, principalmente, os responsáveis pela histórica relação problemática entre verdade e a política. A capacidade de mentir e a vontade de acreditar em mentiras têm sido, ao longo dos anos, as ameaças mais graves ao mundo comum (o espaço e o tempo compartilhados pela diversidade humana e cultural, demais espécies vivas e recursos naturais). Quem fala a verdade não vigora em parlamentos e com raras exceções chega a governos. Quem fala a verdade na política está desde sempre ameaçado de ser difamado, preso injustamente, assassinado ou exilado.

Em minha pesquisa de doutorado sobre as fake news, teorias da conspiração e outras formas de desinformação na política, venho tentando fazer simultaneamente –como sugere o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984)– uma genealogia deste poder e uma arqueologia deste “saber” de modo a entender por que eles retornaram com tal força na atualidade e qual  pode ser a extensão de seus danos morais e materiais em indivíduos, coletivos e nas democracias.

A Arte da Mentira na Política –obra de mais de 307 anos (atribuída por muito tempo a Jonathan Swift (1667-1745), o autor de As Viagens de Gulliver, mas, na verdade, de autoria de John Arbuthnot (1667-1735)– já antecipava e explicitava a problemática relação entre política e verdade, devido à capacidade do ser humano de mentir e demandar por enganação, dois séculos antes do início da popularização da expressão “fake news” –mais ou menos no sentido que lhe damos hoje– nos EUA; e dois séculos e algumas décadas antes de que Freud, Hannah Arendt e os freudiano-marxistas da Escola de Frankfurt –Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin– analisassem a imbricação mais profunda quanto danosa entre política e mentira (propaganda) materializada no Estado nazista conduzido por Adolf Hitler na Alemanha do final dos anos 30.

Líderes fundamentalistas movem seu ódio a inimigos imaginários com citações da Bíblia, Corão e Torá tiradas dos contextos, em si já problemáticos. Mas há também doutrinadores políticos “de esquerda” que fazem isso com a obra de Marx; e alguns ativistas de movimentos de minorias com os textos de Fanon, Butler e Preciado

Por causa da capacidade de uns de enganar (e de gostar de enganar!) e da demanda de muitos outros pela enganação e pela mentira, emergiram com sucesso, naqueles tempos e agora, impostores sedutores e carismáticos travestidos de “intelectuais”, “pensadores” ou “filósofos” que estiveram e estão por trás da ascensão de tiranos, facínoras, ditadores e genocidas. Místicos e misóginos todos eles (e amiúde antissemitas, supremacistas brancos e homofóbicos) sabem construir –com citações de verdadeiros filósofos e pensadores tiradas de seus contextos originais e costuradas– uma colcha de retalhos textuais que agrada os olhos de uma maioria que desconhece o tecido original de cada pedaço emendado um no outro nesta colcha, e a toma como algo inteiro e coerente; e, assim, esses impostores conseguem manipular a demanda de muitos por serem enganados, ou seja, por ver reforçados os preconceitos, ressentimentos e medos que constituem suas subjetividades e imaginários. Eles conseguem mover o ódio das pessoas contra inimigos imaginários (o que Peter Sloterdijk chama de “subjetivação militar”) e lucrar muito com isto.

Algo que líderes religiosos fundamentalistas costumam fazer em seu proselitismo com citações da Bíblia, do Corão e da Torá tiradas de seus contextos, em si mesmos já problemáticos. Mas também algo que doutrinadores políticos que se dizem “de esquerda” costumam fazer com a obra de Marx; e alguns ativistas de movimentos de minorias com os textos de Fanon, Butler e Preciado. Sem mencionar, claro, os coach e a maioria dos jornalistas neoliberais, enganadores incorrigíveis; e políticos oportunistas de centro-direita como Ciro Gomes, que paulatinamente abre mão de sensatez no debate público, de modo a estimular, nas mídias sociais, um culto mistificador e politicamente violento em torno de sua figura, na esperança de obter o mesmo sucesso eleitoral dos fascistas bolsonaristas.

Em relação aos impostores “filósofos” e “pensadores” por trás da mais recente onda de extrema-direita mundo, acaba de ser publicada, pela Editora da Unicamp, a tradução do estudo que o antropólogo Benjamin Teitelbaum –professor na Universidade do Colorado (EUA)– realizou sobre alguns deles: Guerra pela Eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista.

A eleição de Bolsonaro em 2018 e a vitória em 2020 de políticos de direita que se misturam a porcos e depois os descartam, não são só produtos da propaganda baseada em fake news: são também fruto da demanda de muitos pelas mentiras. Ninguém é inocente aí

Em relação a outras obras já publicadas no campo das Ciências Humanas e da Filosofia sobre este mesmo tema, o livro de Teitelbaum se destaca por se basear numa etnografia (na verdade, mais uma rigorosa investigação jornalística) que incluiu horas de entrevista com o principal desses impostores fanáticos: Steve Bannon, o cérebro por trás das propagandas baseadas em fake news e teorias conspiratórias que levou a maioria dos votantes no Reino Unido a optar pela saída deste da União Europeia, e a maioria dos eleitores dos EUA a elegeram Donald Trump em 2016.

Teitelbaum também se dedica neste livro a revelar os vínculos entre Bannon, o charlatão Olavo de Carvalho e a extrema-direita brasileira, hoje dividida entre o “lavajatismo” e o “bolsonarismo”. Ao ler o que o antropólogo revela sobre a trajetória de Olavo de Carvalho –o homem que passou de astrólogo a católico ultraconservador, tendo sido muçulmano no intervalo desta mutação mística–; e ao levarmos em conta o fato de este sociopata ser o mentor “intelectual” de promotores, juízes, parlamentares, ministros , secretários, empresários e jornalistas brasileiros, fica evidente o quanto a capacidade de mentir e enganar e a demanda por enganação podem se tornar ser mortíferos. O governo Bolsonaro é o exemplo mais chocante disto depois do nazismo e do stalinismo.

A eleição de Bolsonaro e de políticos de extrema-direita em 2018 e a vitória, nas eleições municipais deste 2020, de políticos de direita que se misturam com os porcos e depois os descartam não são produtos apenas dos que exerceram sua capacidade de enganar por meio da propaganda baseado em fake news e teorias da conspiração: elas são também fruto da demanda de muitos pelas mentiras que lhes confortam e dão lhes dão identidade. Ninguém é inocente aí. E saber disso é fundamental para lutar pelo espaço da verdade.

Jean Wyllys é escritor, jornalista, doutorando em Ciências Políticas pela Universidade de Barcelona, professor-visitante no ALARI do Hutchins Center da Universidade de Harvard e pesquisador da OSIFE

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