Srecko Horvat: "A esquerda tem muito a fazer para se apropriar dos memes de produção"

Filósofo croata diz que a direita sabe usar melhor as redes e que a esquerda deveria criar seus próprios meios de comunicação

Foto: Petar Markovic/CC
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CYNARA MENEZES

A primeira coisa que pergunto em entrevista pelo Zoom ao filósofo croata Srecko Horvat, um dos fundadores do DiEM25 (Movimento Democracia na Europa 2025) ao lado do ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis e de apoiadores como Slavoj Zizek, Noam Chomsky, Boaventura de Sousa Santos e Ada Colau, é como se pronuncia seu nome.

–Sirétko Rórvat, –ele responde.
–Srecko corresponde a Sergio, algo assim?
– Não, está mais para Félix. Vem da palavra croata para "sorte", significa "felicidade".

Faz tempo que estou interessada em ouvi-lo. Acho que a esquerda brasileira, desde que o Fórum Social Mundial deixou de ter a importância que um dia teve, precisa urgentemente se reconectar com a esquerda atual lá fora. Horvat, aliás, também é um saudoso do Fórum. "É uma coisa que sentimos falta. O Fórum Social Mundial era um evento global para os progressistas ou pessoas que estavam tentando criar alternativas e modelos de sociedades ou economias, mas toda essa energia do Fórum não está mais aqui", lamenta. "Meu sonho é uma composição de diferentes movimentos sociais com os países não-alinhados, no sentido de cooperação entre governos progressistas ao redor do mundo."

Jovem estrela da esquerda em ascensão na Europa, o croata de 38 anos aparece em vídeos no youtube compartilhando a mesa com uma improvável debatedora, a atriz norte-americana Pamela Anderson –amiga de Julian Assange e também hoje uma ativista pela liberdade de expressão. Horvat capturou minha atenção em duas entrevistas: uma para o jornal britânico The Guardian em 2019, onde afirma que "o sistema atual é mais violento do que qualquer revolução", e outra em 2020 para o The Calvert Journal, publicação voltada para a cultura do Leste europeu, onde defende a "apropriação dos MEMES de produção" pela esquerda, o que me pareceu uma ideia original, divertida e realista.

https://youtu.be/IWJVR1i14os

"A direita tem sido muito mais bem sucedida em usar as redes sociais do que a esquerda. Não me sinto tão confortável para falar da política no Brasil, mas acho que Bolsonaro de fato pode agradecer às redes sociais e aos memes parcialmente por seu sucesso, porque foram muito úteis e benéficos a ele. O mesmo eu posso dizer sobre Donald Trump e seu uso das redes sociais", diz. "Acho que esquerda tem que construir seus próprios meios de comunicação. São as duas coisas: usar o que já existe, não há saída, mas ao mesmo tempo temos que criar nossa própria tecnologia, nossa própria mídia."

Na entrevista, Srecko Hórvat fala também da "Iugonostalgia", um fenômeno observado entre os cidadãos dos países da ex-Iugoslávia (Croácia, Sérvia, Macedônia, Eslovênia, Bósnia e Herzegovina e Montenegro) e que se acentuou com a pandemia. Ele reflete ainda sobre o papel da "nova" esquerda no mundo hoje, termo que rejeita, assim como "progressista". Leia a íntegra a seguir.

A direita tem sido muito mais bem sucedida em usar as redes sociais do que a esquerda. Bolsonaro de fato pode agradecer às redes sociais e aos memes parcialmente por seu sucesso, porque foram muito úteis e benéficos a ele

Socialista Morena – Como estão as coisas aí na Croácia em relação ao coronavírus?
Srecko Horvat – A Croácia foi parte da Iugoslávia, então do dia para a noite isso tudo colapsou, tivemos uma guerra sangrenta e nesse meio tempo tivemos 30 anos de privatizações. Chamam isso de 'transição do socialismo real para o capitalismo real', o que basicamente significou a destruição de toda a infraestrutura, das indústrias. A Iugoslávia produzia navios, exportava navios, nossos arquitetos atuavam na Líbia, no Iêmen. E naturalmente também tínhamos uma produção forte de vacinas. Quando o último grande surto de varíola no século 20 ocorreu na Iugoslávia em 1972, foi erradicado em poucas semanas. Nós produzimos 1 milhão de doses de vacina e em poucas semanas conseguimos vacinar 8 milhões de pessoas, a população inteira do país. Embora fôssemos um país socialista, cooperávamos com a Organização Mundial de Saúde e com outros países, inclusive importamos vacinas dos EUA. Você deve entender que era o tempo da guerra fria, mas cooperávamos tanto com os EUA quanto com a China. Quando nós comparamos com os dados de hoje, a Croácia é o terceiro pior colocado na União Europeia em termos de vacinação. Se você compara apenas com a Sérvia, que também foi parte da Iugoslávia, mas não é parte da União Europeia –nós somos e essa é uma das razões pelas quais não temos vacinas suficientes, por causa de todo a debacle da UE e também porque ela está impedindo os países de cooperar com a China ou com a Rússia na importação da Sputnik ou Sinovac–, a Sérvia é a sexta no mundo em termos de vacinação, a segunda após o Reino Unido na Europa, e uma das razões é não estar na União Europeia. A Sérvia tem um líder que critico em muitos aspectos, é uma situação muito perigosa no que tange à democracia, aos direitos humanos, à liberdade de imprensa, mas geopoliticamente ele consegue jogar esse jogo e importou as vacinas da Rússia e da China. Então, na Croácia, até o momento, a situação é bem ruim. OK, nossos números não estão tão altos, não estamos em lockdown, as pessoas estão bebendo em cafés e tal, mas ainda assim é muito estranho…

Todo mundo diz aqui na Croácia que se Tito estivesse vivo não só estaríamos produzindo vacinas como estaríamos exportando. Quando o último grande surto de varíola no século 20 ocorreu na Iugoslávia em 1972, foi erradicado em poucas semanas.

–Usam máscaras?
Sim, usam, mas não nos cafés. Nos cafés é como se a pandemia não existisse. Mas é muito estranho, sei que no Brasil e em outros países está sendo muito mais difícil, mas aqui na Europa você tem países vizinhos, tem a Sérvia que vacinou mais de 1 milhão de pessoas e tem países com lockdown total, toque de recolher… É muito estranho, é como acordar em um filme todo dia.

–Você fala de como seria a campanha anti-Covid na época da Iugoslávia. Se considera um iugonostálgico?
Nasci na Iugoslávia, poucos anos após a morte de Tito (ele nasceu em 1983 e o marechal Tito morreu em 1980). Então não me considero nostálgico no sentido da nostalgia que é praticada na ex-Iugoslávia. Tipo no aniversário da morte de Tito, as pessoas com pôsteres, cartazes e todo esse tipo de memorabilia… Eu era muito jovem para ter lembranças desse tempo, e as memórias muitas vezes são ficcionais, você relembra etapas particulares de sua vida, então a gente nunca sabe o que realmente aconteceu, a gente tem uma memória que é construída. Mas eu acho que há um potencial emancipatório na nostalgia, especialmente em nossos países neste momento. Todo mundo diz aqui na Croácia que, se Tito estivesse vivo, não só estaríamos produzindo vacinas como estaríamos exportando para outros países do mundo, e há alguma verdade nesse tipo de afirmação. Então a nostalgia muito frequentemente pode fazer você olhar para o passado e pegar nele algo, não porque você quer comparar com o presente, mas porque olhando para o passado pode construir um futuro melhor. Falar sobre o passado da Iugoslávia socialista é pensar na luta antifascista, autogestão econômica… Hoje muitos economistas como Thomas Piketty e outros social-democratas estão falando sobre redistribuição de riqueza, sobre dar um pouco mais de direitos para os trabalhadores, mas na Iugoslávia socialista nós tínhamos um sistema de autogestão que não era perfeito, mas já em 1950 na Iugoslávia socialista os trabalhadores eram acionistas, participavam da gestão das empresas…

–Havia algumas boas ideias.
Sem dúvida. A gente não deve olhar para trás e chorar, pensar que ficou no passado para sempre, mas olhar e ver o quê se pode usar hoje dessas ideias.

https://youtu.be/EJjENfHIOxQ

–Nós temos um jogador no Brasil que veio da ex-Iugoslávia, Petkovic (nascido na Sérvia), e ele está sempre falando de como foi bom ter crescido lá, que teve educação boa e tal. É muito curioso para nós vê-lo falar essas coisas.
Se você olha para a luta dos estudantes nos EUA contra a privatização da educação, todos contraindo dívidas para estudar, e se você pensa que na Iugoslávia tínhamos educação gratuita para todos, até mesmo pessoas da África vinham para Belgrado ou Zagreb estudar, porque estavam conectados pelo Movimento dos Países Não-Alinhados… Isso é uma coisa que sentimos falta hoje. O Fórum Social Mundial era um evento global para os progressistas, digamos assim, ou pessoas que estavam tentando criar alternativas e modelos de sociedades ou economias, mas toda essa energia do Fórum não está aqui mais. O Movimento dos Países Não-Alinhados existe na wikipedia, mas eu não vejo nenhum tipo de ação. Veja todo esse imperialismo das vacinas. Os EUA, o Reino Unido e a União Europeia acabaram de votar contra, na Organização Mundial do Comércio, a suspensão da propriedade intelectual das vacinas. Nestes momentos que a gente vê a falta que faz esse tipo de movimento. Não só um fórum, uma associação de países progressistas, mas muito mais, o que é mais ou menos meu sonho, algo que combine o Fórum Social Mundial, uma composição de diferentes movimentos sociais com os países não-alinhados, no sentido de ter cooperação entre governos progressistas ao redor do mundo. Eu diria que uma combinação de anarquismo com socialismo, especialmente em relação às vacinas. Tome por exemplo Cuba, que vai produzir 100 milhões de doses de vacinas até o final do ano e vacinar seu povo com sua própria vacina. Não seria bacana se a pequena Croácia cooperasse com Cuba? A Iugoslávia socialista cooperava. Che Guevara veio para Rijeka, encontrou Tito… OK, cooperavam com armas, não com vacinas. Mas isso mostra que podia haver um bloco anti-imperialista, hoje a gente precisava disso.

Che em Rijeka, Croácia, em 1959. Foto: Petar Grabovac

–No Brasil, me preocupa que parte da juventude de esquerda engajada ainda me parece presa à revolução armada, à União Soviética, a pensadores como Lenin e até Stalin… Muito depois da revolução russa, Salvador Allende já falava em socialismo pela via democrática. Como você vê o socialismo hoje? Ainda acredita em revolução?
Primeiro uma provocação a você: Salvador Allende não pegou em armas, mas os outros pegaram em armas contra Salvador Allende e o mataram… Quando a gente fala em violência, em algumas formas de ativismo de esquerda que podem terminar em terrorismo ou violência, nós sempre temos que ter em mente a violência selvagem do sistema. Sou obviamente muito crítico à violência, não sou uma pessoa violenta, e também penso que muitos dos movimentos terroristas revolucionários do século 20, como as Brigadas Vermelhas na Itália ou o Baaden-Meinhoff na Alemanha, resultaram em um estado policial e de vigilância ainda mais violento. Nós certamente podemos questionar os métodos. Concordo com você que é um problema quando alguém idolatra alguém, seja o passado ou grandes pensadores ou revolucionários do passado, mas também muito frequentemente contemporâneos de sua própria era. Quando se trata, por exemplo, de ecologia, foram os anarquistas os fundadores da ecologia social ou ecologia política, não os marxistas, eu diria. No meu caso particular, na ex-Iugoslávia nós dissemos 'não' a Stalin no começo. A Iugoslávia estava no meio: contra os EUA e contra o império soviético. Isso não significa que não tivemos problemas com democracia, dissidentes, etc., mas definitivamente não éramos stalinistas. Eu li Stalin, porque eu leio tudo, me interessa ler. E eu li Stalin porque além de Filosofia estudei Linguística, então li os textos de Stalin sobre Linguística –se foram ou não escritos por ele, não importa. Mas acho que temos que ler não só esquerdistas controversos como Stalin, mas também figuras como Ernst Jünger, Rudolf Steiner ou pensadores da extrema direita. Devemos lê-los não para repeti-los ou reproduzi-los, mas para aprender algo disso. Mas você está certa, hoje –o que é uma citação de Marx– nós temos que desenhar nossa poesia do futuro. Foi o próprio Marx quem criticou os movimentos sociais que olhavam para o passado e eram inspirados pelo passado, propondo ideias de um velho século. Você vê pessoas da chamada 'nova esquerda', que com frequência não é nova, porque eles advogam, na Europa, formas modestas de social-democracia, quando hoje a gente precisa pensar em algo mais profundo, que não estaria dentro das restrições do sistema atual. É uma grande discussão que temos, acho, mas definitivamente temos que ler autores do passado, há muitos deles que permanecem desconhecidos, e que ainda possuem aquelas pequenas sementes que podem ser usadas hoje.

Uma provocação a você: Allende não pegou em armas, mas os outros pegaram em armas contra Allende e o mataram… Quando a gente fala em violência, nós sempre temos que ter em mente a violência selvagem do sistema

–Como você se define? Socialista, comunista?
Eu odeio me definir. A definição sempre te limita. Fui criado na Iugoslávia pós-socialista, cresci lendo literatura anarquista, Kropotkin, Bakhunin, Malatesta, Emma Goldman… Foram minhas primeiras influências políticas. Então fui para os clássicos para entender o que acontecia na ex-Iugoslávia, em termos de economia política, essas coisas. Tenho dificuldade em me definir. Se eu estiver na companhia de marxistas, provavelmente irei provocá-los sendo um anarquista, e se eu estiver entre os anarquistas irei provocá-los. Elisée Reclus, o famoso geógrafo anarquista francês, dizia que não devemos dividir evolução de revolução, que eles são de certa forma o mesmo. Muito frequentemente uma revolução vem após uma evolução, no pensamento, por exemplo. Ele foi também contra essa ideia primitiva de anarquismo de que podemos deixar a sociedade, viver num pequeno paraíso… Ele lembrava que precisamos de um tipo de verticalidade, uma estrutura que conecte essa luta com outras lutas. Com a mudança climática, a ameaça nuclear, a pandemia, isso é mais necessário do que nunca. Conseguir pequenas heterotopias, como Foucault diria, uma utopia real, baseada em igualdade, solidariedade, mas ao mesmo tempo conectada com movimentos na África, Rússia, EUA, Equador…

–Você prefere o termo “progressista”, como em Internacional Progressista?
De jeito nenhum. Eu uso isso, faço parte da chamada Internacional Progressista, mas para ser honesto, não prefiro esse termo. Eu também não gosto do termo 'progresso'. Acho que a esquerda tem que fugir do próprio conceito de progresso, no sentido de crescimento indefinido, expansão indefinida do capitalismo, o que significa mais extrativismo, mais exploração. Não acho que a gente precisa de mais progresso. Entendo por que estrategicamente o termo 'progressista' está sendo usado, porque serve como um guarda-chuva para verdes, esquerdistas, anarquistas, comunistas etc., mas ao mesmo tempo tanta gente se define como progressista hoje em dia e não há tanto progressismo em suas políticas… Então é um termo que a gente deve analisar criticamente.

https://youtu.be/7hFy02TSH4U

–Eu gostei muito de uma entrevista sua onde você fala que a esquerda deveria se apropriar dos memes de produção. Você acha que a esquerda não sabe usar tão bem as redes sociais quanto a direita?
–Sem dúvida eu diria que a direita é muito mais bem sucedida em usá-las. Em relação aos memes, não me sinto tão confortável para falar da política no Brasil, mas acho que Bolsonaro de fato pode agradecer às redes sociais e aos memes parcialmente por seu sucesso, porque foi muito útil e benéfico para ele. O mesmo eu posso dizer sobre Donald Trump e seu uso das redes sociais. Se você pensa sobre a invasão do Capitólio em janeiro, foram as redes sociais que provocaram aquilo e muitos daqueles lunáticos que invadiram imediatamente postaram nas redes sociais. Então a esquerda tem muito mais a fazer para se apropriar dos memes de produção. Não no sentido de reproduzir isso, mas de entender que estamos vivendo numa era tecnológica, em que a transmissão de ciência, conhecimento, notícias, realmente muda. Se você olha para trás no século 20, Mussolini e Hitler provavelmente não seriam tão bem sucedidos se não fosse pelo rádio. Leni Riefenstahl veio depois, ainda não estávamos na era da televisão. Eles se deram conta que se ocupassem apenas estádios com milhares de pessoas seria grandioso, mas que com o rádio podiam atingir milhões. Há uma ligação próxima entre o fascismo e o uso de novas tecnologias. O paralelo que podemos fazer hoje são as redes sociais. Populistas de direita, extremistas ou líderes totalitários estão realmente usando as redes sociais e as novas tecnologias para conquistar o poder ou permanecer no poder ou transmitir desinformação, o que nos leva a esse momento tão perigoso. Com a pandemia, isso se acelerou ainda mais, a zoomificação da vida, a influência da tecnologia. Veja como é a vida agora, não sei no Brasil, mas na Croácia agora as companhias de delivery estão gigantes, entregando comida sem contato algum com o outro, toda essa merda, ensino remoto, tudo remoto. O que me preocupa é que os meios de produção –não os memes de produção– estão nas mãos de poucas companhias poderosas, olhe quem são os ricos atualmente: Elon Musk é o primeiro, o segundo é Jeff Bezos, cuja principal acumulação reside em distribuição de produtos, então ele basicamente concretiza consumismo, Musk vende os carros Tesla, todo esse 'capitalismo verde' que agora está se tornando grande. Por outro lado, há essa cooperação com os governos que garante o monopólio dessas empresas. Muito similar ao século 20, o papel que a IBM teve no Holocausto, a Ford cooperando com Hitler. Essa ligação entre as companhias de tecnologia, principalmente do Vale do Silício, e este tipo de governos e líderes é muito perigosa.

E se fosse Navalny o bloqueado quando convocou para protestos na Rússia? Claro que não, porque provavelmente os EUA ficariam felizes com protestos na Rússia. Imagine se Elon Musk é banido do twitter porque pratica especulação financeira, tuíta coisas que abalam o mercado?

–Mas como a esquerda pode usar as redes melhor, em sua opinião?
Por um lado, a gente não pode escapar, a gente tem que usá-las, mas por outro, acho que a gente tem que construir nossos próprios meios de comunicação. Então são as duas coisas: a gente tem que usar o que já existe, não há saída, mas ao mesmo tempo temos que criar nossa própria tecnologia, nossa própria mídia, nossas próprias relações sociais, porque o que acontece com as redes sociais é que elas monetizam, fazem das relações sociais commodities. Esse é o grande problema. Normalmente os espaços públicos eram os locais para trocar informações, e quando você troca informações, muito frequentemente são críticas ao governo. Há um link entre os cafés de Paris e a revolução francesa, porque eram os lugares onde as pessoas trocavam informações e críticas. Hoje em dia nossa Ágora é o Zoom, as redes sociais que já estão nas mãos do poder, e esses espaços públicos desapareceram. As redes se dizem públicas, mas não são realmente.

–Você foi a favor do banimento de Trump? Muitos no Brasil se preocuparam dizendo que é algo que pode se voltar contra a esquerda no futuro.
É uma pergunta interessante, porque a gente se pergunta: 'e se?' Acho que naquele momento havia razões para bani-lo, mas ao mesmo tempo isso abre uma Caixa de Pandora. Quem é o próximo? E se fosse Navalny o bloqueado quando convocou para protestos na Rússia? Claro que não seria, porque provavelmente os EUA ficariam felizes com protestos na Rússia. Não sou um fã de Navalny, não me entenda mal, tenho críticas a seu populismo e xenofobia, mas é uma pergunta interessante. Imagine se Elon Musk é banido do twitter porque pratica especulação financeira, tuíta coisas que abalam o mercado? Leva à clássica questão do império romano: quem vigia os vigilantes? Quem irá vigiar aqueles que decidem bloquear alguém? E é claro que alguns nunca serão bloqueados. Não tenho uma resposta para isso, para ser honesto, mas é uma situação muito cínica, muitas outras pessoas além de Donald Trump não foram bloqueadas. Então por que ele foi bloqueado? Que interesses eram esses? Por que Navalny não foi bloqueado? Que interesses eram esses? É preciso colocar esse tipo de questão.

–Você acompanha a política no Brasil? O que sabe sobre Bolsonaro?
Tudo de pior. Acompanho o que posso, porque tento acompanhar quase tudo, profissionalmente, e também tenho amigos aí. Estive no Brasil, apenas em Porto Alegre, tenho boas memórias. Isso foi alguns anos atrás, uns dez anos. Fui para fazer uma pesquisa e foi muito interessante. Então eu acompanho a política brasileira. Inclusive vi Lula –ele não me viu– no Fórum Social Mundial em Dakar, no Senegal. Lembro quando Lula chegou, todo mundo ficou gritando, todo mundo ficou feliz, e depois soube quando Lula foi preso e aí Bolsonaro foi eleito. Mas também recebo as boas notícias, sei que Lula está solto de novo, e que isso provocou um terremoto político no Brasil. Sei da situação do vírus aí, como Bolsonaro está lidando com isso, com populismo, pulando no mar cercado de gente, e é como assistir um filme muito bizarro. E os problemas do Brasil, as queimadas na Amazônia… Precisamos de um governo progressista no Brasil, seria uma grande influência sobre o resto do mundo. Mas o que a gente pode ver atualmente é que o bloco imperialista liderado pelos EUA está de novo colocando seus dedos sobre vários países da América Latina, como o Equador. É incerto o que irá acontecer lá, esta espécie de golpe soft que está acontecendo. Dez anos atrás estava uma situação completamente diferente na América Latina. Mas acho que a América Latina está despertando de certa maneira, podemos ser críticos aos líderes atuais, inclusive os de esquerda, mas acho que há um bom movimento para alguma coisa diferente do que ocorreu nos últimos quatro anos. Os ventos estão mudando.

–Joe Biden não é tão próximo a Bolsonaro quanto Trump, mas algumas pessoas na esquerda acreditam que ele será tão ruim para o Brasil quanto.
Não sei como é a relação entre Biden e Bolsonaro, mas as políticas externas de Biden não parecem boas. Ele já bombardeou a Síria… Biden também é parte do problema. Se ele for melhor para o Brasil, que bom. Espero que seja.

Acho que a América Latina está despertando. Podemos ser críticos aos líderes atuais, inclusive os de esquerda, mas há um bom movimento para alguma coisa diferente do que ocorreu nos últimos quatro anos. Os ventos estão mudando

–Você acredita que algum dia iremos "derrotar o capitalismo"?
Acho que o capitalismo irá derrotar a ele mesmo antes, porque já é impossível extrair tantos recursos naturais, mesmo que pessoas como Elon Musk vão para Marte ou para o espaço. O próprio capitalismo é seu maior inimigo, então o que a esquerda tem que fazer é empurrar um pouquinho e já preparar terreno para o pós-capitalismo. Não no sentido de estarmos esperando pelo Messias, o que a esquerda normalmente faz, ou esperando um grande líder, então o líder nos decepciona, e aí ficamos nostálgicos e melancólicos… Nada disso. Não esperar pela revolução, mas preparar terreno para o day after, em nossas relações sociais, com outras espécies, em nossa relação com o planeta. No sentido que o capitalismo é o principal inimigo não apenas dos seres humanos, mas das outras espécies e da própria biosfera.

–Em seu novo livro, Após o Apocalipse, você fala sobre essas ameaças ao planeta interconectadas. Como a nova esquerda pode reagir a elas?
Hesito muito em usar este termo 'nova esquerda'. A cada dez anos, fala-se em 'nova esquerda', e então 'nova nova esquerda'… Acho um termo muito poluído, contaminado, no sentido de bagagem histórica. Não sei exatamente o que é a nova esquerda. Mas, se temos que usar este termo, a nova esquerda deve ser verde, acho que é algo que muda em relação à esquerda do século 20, mas que já estava no anarquismo, política radical com ecologia política. Mas, voltando ao livro: um dos meus mestres é Gunther Anders, que infelizmente não é um filósofo muito conhecido. Talvez ele seja conhecido por alguns porque durante um curto tempo foi casado com Hannah Arendt, depois do relacionamento dela com Heidegger. Ele era judeu, e escapou para os EUA. Em minha opinião, Anders tem os mais importantes escritos sobre o apocalipse, a era nuclear e a tecnologia. Inventou o termo 'supraliminar', que não é 'subliminar', ou seja, você assiste televisão e então decide ir ao supermercado, mas 'supraliminar', no sentido de que é tão grande que a gente nem consegue entender. Anders fala principalmente da era nuclear. Eu digo que a gente vivencia a colisão entre a era nuclear e a mudança climática, que estão virando a mesma ontologia. Lugares como as ilhas Marshall afundam com toda a radioatividade, que é produto dos testes nucleares nos EUA, e por causa da crise climática. Isso é algo completamente novo. Esses problemas supraliminares ameaçam todo o planeta, e a gente tem que pensar muito profundamente sobre nossas estratégias, nossas táticas, porque nada parece suficiente. Ao mesmo tempo que a gente não precisa de um movimento antiglobalismo ou de um movimento global, a gente precisa de um movimento planetário. O que significa não falar apenas de humanos, solidariedade entre humanos, ou proteger a natureza, mas espaço-tempo, outras espécies, a biosfera, a radiação…

–Você fala sobre defesa de outras espécies. Essa “nova esquerda” deve ser vegana ou vegetariana?
Não diria necessariamente vegana, mas definitivamente vegetariana. Sou vegetariano há 20 anos, mas nunca falei publicamente disso. Odeio esse vegano-fascismo ou vegetariano-fascismo que chega para as pessoas e as culpa. Nunca fiz isso. Falo polidamente a respeito, mas é uma grande parte do problema quando se trata das emissões de carbono, da poluição do meio ambiente. Por um lado está a economia política de matar animais, e do outro, com a mesma importância, o problema ético-moral da morte industrializada em linhas de montagem, uma espécie de campo de concentração de animais. Com certeza não é ético, não é saudável, e eu acho que no século 21 há muitos outros meios de comer. As políticas verdes deveriam ser parte de qualquer esquerda.