Documentário ilustra morte e resistência em campo de refugiados palestinos na Síria – Blog Terra em Transe

Exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema de SP, documentário “Pequena Palestina” relembra o cerco criminoso de Bashar Al-Assad ao local

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Por Isabela Agostinelli e Verônica D'Angelo *

Entre 21/10 e 03/11 de 2021, aconteceu a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Neste ano, o evento ocorreu em caráter híbrido: além dos filmes apresentados presencialmente em cinemas espalhados pela cidade de São Paulo, alguns filmes também foram exibidos de forma online. De um total de 264 filmes, mais de 20 são provenientes de países do Oriente Médio. Dentre eles, estava o documentário Pequena Palestina, Diário de um Cerco (2021). [Veja o trailer aqui].

O documentário é a estreia de Abdallah al-Khatib na direção e fruto de filmagens feitas entre 2011 e 2015 no campo de refugiados palestinos Yarmouk, na Síria, onde Abdallah nasceu e morou até ter sido expulso pelo Estado Islâmico em 2015. Formado em Sociologia na Universidade de Damasco, Khatib trabalhava voluntariamente na UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente) antes do início das instabilidades políticas na Síria desde 2011. Atualmente, mora na Alemanha como consequência da destruição de Yarmouk.

Refugiados palestinos vivem catástrofes contínuas

O campo de Yarmouk é um distrito da cidade de Damasco, na Síria, e foi estabelecido em 1957 para abrigar os refugiados palestinos que estavam dispersos em espaços públicos da cidade. Esses palestinos faziam parte daqueles que haviam sido forçadamente deslocados no contexto da Nakba, a catástrofe palestina na qual mais de 700 mil palestinos foram expulsos de suas terras na ocasião da criação do Estado de Israel (1948). O campo tem 2 km2 e já chegou a abrigar 160 mil refugiados antes da eclosão da Guerra da Síria (2011) e suas consequências fatais. No começo da guerra, apenas 18 mil refugiados viviam ali. Em 2020, esse número não ultrapassava os 3 mil.

A Guerra da Síria, iniciada em 2011, teve como um de seus espaços o campo de Yarmouk, que em algumas ocasiões se tornou campo de batalha entre o Exército Livre da Síria, grupo armado de oposição a Bashar Al-Asaad, e a Frente Popular para a Libertação da Palestina - Comando Geral, aliada de Assad. Nesse sentido, os palestinos de Yarmouk viviam os desdobramentos tanto da chamada Questão Palestina/Israel quanto da Guerra da Síria. Em entrevista ao Monitor do Oriente Médio, o diretor Khatib afirma que o cerco a Yarmouk “foi mais uma continuação da série de crimes cometidos contra os palestinos, e o regime sírio nunca se inclinou para a causa palestina”.

Em julho de 2013, instaurou-se o bloqueio ao campo: as vias de passagem foram fechadas, impossibilitando a entrada e saída de pessoas e produtos. Somados à fome e à desnutrição provocadas pelo cerco criminoso, ocorreram os bombardeios aéreos e os tiroteios. As forças leais a Assad argumentavam estar lutando contra os grupos rebeldes e as forças de oposição. Porém, como bem ilustra o documentário "Pequena Palestina", as maiores vítimas diretas foram a população palestina de Yarmouk.

A fome se tornou a grande arma de guerra. Com acesso quase inexistente a alimentação, água e medicamentos, a população de Yarmouk buscava com desespero a pouca ajuda internacional que chegava. Filas quilométricas se formavam em uma das entradas do campo, nas quais se esperava uma pequena porção de alimento em meio à paisagem de morte que o regime de Assad instaurou em Yarmouk. Até 2015, antes de o campo ser tomado pelo ISIS, cerca de 181 residentes haviam morrido de fome.

Dimensões cotidianas do conflito e as paisagens de morte

O documentário nos fornece um material riquíssimo sobre o cotidiano do conflito. É digno de nota, por exemplo, como os frequentes sons de bombardeio nos faz pular da poltrona do cinema localizado há quilômetros (e anos) de distância, mas não causa nenhuma reação nas pessoas que estão sendo filmadas, mesmo quando acontecem a poucos metros de si mesmas e de suas casas. São nesses pequenos detalhes que vamos construindo em nossa mente o horror daquela realidade.

Porém, se em certos momentos a realidade cotidiana apresentada nos choca e parecemos muito distantes daquelas pessoas, um dos maiores trunfos do documentário é justamente intercalar estes momentos com outros que revelam o universal que nos une. Uma das principais ferramentas que o diretor utiliza para nos conectarmos são as crianças. Em diversas cenas, somos agraciados com crianças fazendo o que fazem (ou deveriam fazer) em qualquer lugar do mundo: brincando, sorrindo, criando universos imaginários a partir de elementos reais. Em uma cena em particular, meninos colhem grama para comer e riem da situação, dizendo que agora eles são como os gados.

Apesar de todo horror e, em certos momentos, forte sentimento de desilusão com o futuro expresso mesmo nas falas das crianças, esses momentos lúdicos não servem como uma espécie de alívio para os horrores da guerra, mas como uma humanização importante daquelas pessoas e para que, por mais diferente que sejam nossas realidades, possamos nos conectar mais verdadeiramente com aquelas vidas que estão sendo constantemente desrespeitadas e ameaçadas.

Outro grupo etário que nos chama atenção durante o documentário são os idosos. Se as crianças nos oferecem breves lampejos de normalidade, os idosos parecem ser a tomada de consciência da desilusão. Quando pensamos que o campo de Yarmouk foi criado no final dos anos 1950, percebemos que alguns de seus habitantes estão lá desde sua infância ou adolescência e praticamente não conheceram outra vida que não a do refúgio. Em determinado momento, uma senhora diz como muitos palestinos passaram a falar como sírios depois de décadas em Yarmouk e como, para ela, era importante manter seu sotaque palestino. Para a grande maioria da população do campo, esses idosos são a única conexão com a Palestina e com suas raízes. E esta conexão não apenas está fadada ao fim pela inevitável passagem do tempo como, naquele contexto de cerco, estava sendo ativamente atacada e morta.

Yarmouk, a pequena Palestina: entre tragédias e resistências

Yarmouk, de fato, é uma pequena Palestina. Apesar de os eventos dali serem, em alguma medida, particulares, eles também se repetem em outras áreas da região. As imagens do cerco de Yarmouk nos remetem imediatamente à Faixa de Gaza, por exemplo, que desde 2007 sofre com bloqueio israelense e egípcio que dificulta a passagem de pessoas, alimentos, medicamentos, bem como o acesso a água e eletricidade. Diante dessas situações, é evidente que sanções, embargos e bloqueios servem como um mecanismo "invisível" de guerra e, como observado em Yarmouk, seus efeitos podem ser tão letais quanto as violências diretas.

Em alguns momentos, os idosos do documentário relembram a Nakba, uma memória que evoca forças daqueles que tentam resistir, a todo custo, a uma nova expulsão. É por isso que as cenas de protestos e construções de barricadas em um dos postos de passagem do campo são tão significativas. Os palestinos de Yarmouk - e de Gaza, Jerusalém, Cisjordânia - mostram que a resistência palestina está sempre ativa e em suas diversas formas: manifestações políticas, luta armada, humor, solidariedade e, como ilustrado pelo documentário "Pequena Palestina", arte.

*Isabela Agostinelli é doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP e do Grupo de Trabalho Oriente Médio e Norte da África do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO).

*Verônica D’Angelo é mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP e do Grupo de Trabalho Oriente Médio e Norte da África do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.