A eleição que Lima perdeu – Blog Terra em Transe

Ainda não se sabe se as elites cosmopolitas de Lima já realizaram sua “escolha muito difícil”, embora as evidências indiquem que apoiarão sem pestanejar a nova forma do fujimorismo encabeçada por Keiko Fujimori

Foto: El Mercurio (Reprodução)
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Por Carlos Eduardo Landim e Lucas Arean *

Na última semana (12 de abril), durante a manhã, na provincial cidade de Chota, uma das regiões mais pobres do Peru, um professor e líder sindicalista de origem indígena ia montado a cavalo e com um lápis em mãos (símbolo de seu partido) votar para a eleição presidencial acompanhado de apoiadores. Na noite do mesmo dia, em Lima, jornalistas e analistas políticos tinham dificuldade em explicar como um candidato que até então era totalmente desconhecido das elites cosmopolitas de Lima se mostrava o provável candidato mais votado no 1° turno eleitoral. A ausência de imagem do candidato durante a apuração na cobertura da CNN é um exemplo disso.

Não seria descomedido afirmar que o resultado das eleições peruanas no último domingo inibiu os ideólogos neutralistas que anunciam frequentemente a inexistência da contraposição fundamental entre os interesses das camadas subalternas e suas elites, ou seja, a famigerada “luta de classes”. O 2° turno será disputado entre Pedro Castillo, professor e sindicalista do Partido Perú Libre, e uma velha conhecida da população peruana, Keiko Fujimori, filha do ex-presidente e ditador Alberto Fujimori, do Partido Fuerza Popular.

Historicamente marcado por uma profunda desigualdade regional que vem se acentuando nas últimas décadas, a eleição evidenciou as fraturas de um Peru devastado por décadas de neoliberalismo e a tentativa de reorganização dos setores da cidade e do campo, que enxergaram em Castillo um aspirante legítimo de suas causas. Se considerado que no Peru cerca de 20% da população vive na pobreza e Castillo foi ao 2° turno com 19% dos votos, é possível imaginar quais setores majoritariamente o apoiaram.

Do outro lado da disputa está Keiko Fujimori, que em sua terceira tentativa de chegar ao poder, busca abraçar o legado de seu pai, Alberto Fujimori, que governou o país de 1990 até 2000, e foi responsável pela implementação do neoliberalismo através do conjunto de medidas que ficou conhecido como Fujishock. Incorporando a “mão de ferro para resgatar novamente o Peru”, a candidata tenta se afastar de seu passado recente de condenação por lavagem de dinheiro e construir uma autoimagem de compromisso com as instituições democráticas. Ao mesmo tempo, Keiko exalta o governo de seu pai pela “extinção do terrorismo no Peru”, referindo-se principalmente a guerrilha Sendero Luminoso, um grupo que se autoproclamava socialista, mas que fazia uso de métodos de atuação fanáticas e antipopulares que foi responsável pelo assassinato de centenas de dirigentes e políticos.

Para compreender a singularidade desse processo eleitoral, que acontece em meio a uma crise de legitimidade sem precedentes, que levou a sucessão de três presidentes em uma semana no ano passado, ao agravamento da pandemia de Covid-19 e ao esgotamento do neoliberalismo, é necessário reconstruir a breve trajetória do Peru nas últimas décadas.

Reconstruindo a história recente do Peru

A história recente do Peru é marcada por uma brusca inflexão política. Na década de 1980 o país era considerado o polo aglutinador das forças de esquerda da América do Sul. Além de ser governado por Alan Garcia, figura progressista que chegou a ser presidente honorário da Internacional Socialista, o principal setor da oposição era uma frente composta por partidos de esquerda. Além disso, havia uma forte atuação das guerrilhas no campo. A eleição de Alberto Fujimori sinalizou a instauração de um regime autocrático de militarização e tutela social sob a justificativa de combate ao terrorismo. As primeiras ações do governo foram a repressão sem precedentes não apenas a guerrilha, mas a todos os movimentos sociais organizados.

Derrotados os maiores adversários do regime, instaurou-se, em 1992, uma ditadura sustentada nos altos comandos militares e policiais com largo apoio dos setores das elites beneficiadas pelas agressivas reformas econômicas neoliberais que já vinham sendo implantadas desde a ascensão de Fujimori ao poder. As Forças Armadas ocuparam edifícios públicos enquanto o presidente anunciava o fechamento do Congresso e, durante esse processo, foram saqueados os arquivos do poder judicial. No terreno das instituições nacionais, colocou-se em prática uma estratégia de controle do congresso, do poder judicial e nos organismos eleitorais. A criminalização da oposição, permitiu a Fujimori acelerar o desenvolvimento de sua agenda. Em 1992, já haviam sido expedidos 923 decretos desde o início do seu mandato, entre eles, os que consagraram a privatização de empresas estatais em diferentes ramos estratégicos da economia (ferro, zinco, petróleo, eletricidade, entre outras).

O fim da década fujimorista (2000) abriu as portas para a reorganização dos diversos atores sociais de oposição do regime. Entretanto, a redemocratização peruana não modificou substantivamente a política econômica levada a cabo na década de 1990. O intelectual peruano Ricardo Palácios, no livro “América Latina na Encruzilhada”, assinala que o continuísmo neoliberal na transição democrática do governo Alejandro Toledo (2002-2006) se manifestou em três aspectos pontuais: a) A designação do ministro de Economia e Finanças, Pedro Pablo Kuczynski, gerente de transnacionais e futuro presidente da república (2016-2018); b) O início da negociação do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos que seria assinado em 2007, durante o segundo governo de Alan Garcia; e c) A continuidade da privatização de empresas públicas, como a Empresa de Geração Elétrica de Arequipa S.A (Egasa) e a Empresa de Geração Elétrica do Sul (Egesur).

O retorno de Alan Garcia ao poder (2006-2011), sinalizou – como bem sintetiza o professor Fábio Barbosa em sua obra “Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016)” – um abandono das credenciais progressistas e de um projeto de desenvolvimento nacional, mantendo o arcabouço econômico normativo herdado de Fujimori e intocado por Toledo. Em 2011, a vitória foi de Ollanta Humala, que havia sido o representante de esquerda nas eleições contra Alan Garcia no pleito anterior, chegando a ser identificado como a “versão peruana” de figuras como Hugo Chávez e Evo Morales. Contudo, para que pudesse canalizar o voto antifujimorista e da direita do país, o candidato teve que assumir compromissos com esses setores. O discurso moderado do presidente durante a campanha tomou corpo no mandato com um projeto nacional de conciliação e forte impacto ambiental, o que mobilizou forte resistência dos setores campesinos e indígenas. Dados registraram 210 conflitos sociais durante o governo Humala até meados de 2015, dos quais 140 eram de natureza socioambiental.

Os anos mais recentes foram de contínua turbulência na vida política peruana. Desde o último pleito presidencial, em 2016, o Peru teve quatro presidentes, dos quais três se sucederam em apenas uma semana. O mandato de Kuczynski, eleito como candidato das elites empresariais peruanas contra Keiko Fujimori em 2016, foi interrompido em 2018 após renúncia ocorrida por um escândalo de vazamento de áudios sobre compra de votos. O vice-presidente, Martín Vizcarra, sofreu o impeachment, em 2020, por “incapacidade moral”, segundo o julgamento do congresso. O sucessor, Manuel Merino, presidente do Legislativo, teve um mandato relâmpago de cinco dias,  renunciando após forte mobilização das ruas, que se opuseram ao impeachment de Vizcarra. Desde então, Francisco Sagasti, eleito no parlamento, exerce o poder de chefe do Executivo.

Um balanço das eleições

A confluência de turbulência política, altos índices de contaminação por Covid-19 e a altíssima taxa de rejeição a todas candidaturas, levaram  a um cenário incerto no que tangia as possibilidades de resultados do primeiro turno das eleições, com a última pesquisa durante a campanha indicando um empate técnico quíntuplo. Neste contexto de imprevisibilidade, Castillo foi capaz de mobilizar amplamente o voto pobre, camponês e indígena, do assim chamado “Peru profundo” que se via abandonado pelos demais candidatos associados às elites de Lima, alcançando 19% dos votos válidos enquanto Keiko Fujimori chegou ao segundo-turno com 13,3%. Examinando os dados eleitorais no município de Lima, os resultados não refletem a situação nacional, pois enquanto os dois candidatos mais votados da cidade, o economista liberal Hernando de Soto (Avanza País) e o ultraconservador Rafael Aliaga (Renovación Popular) falharam em alcançar o 2° turno nacionalmente, Keiko Fujimori ficou em terceiro lugar enquanto Pedro Castillo conquistou na cidade mais populosa do país apenas 5.2% dos votos (em sua maioria nos bairros periféricos de Lima), ficando em  sétimo lugar no município.

Já no departamento mais empobrecido do país, Huancavelica, Castillo conquistou surpreendentes 54% dos votos no 1° turno. Seria apressado chegar a conclusões finais levando em consideração apenas uma comparação entre resultados em diferentes departamentos, no entanto, o conjunto de fatores históricos e políticos previamente apresentados aliado a retórica de Castillo, que no primeiro turno buscou firmar-se pela contradição entre uma Lima próspera e um interior peruano empobrecido e cético em relação à suas elites, pode explicar essa contradição entre os votos em Castillo em lugares desfavorecidos.

A campanha de 2° turno se concluirá apenas no dia 6 de junho e não é possível realizar qualquer previsão sóbria neste momento. Apesar disso, pode-se inferir que pelo fato  de ambos candidatos compartilharem uma agenda conservadora no que tange a questões de gênero e costumes, o debate eleitoral se restringe aos projetos econômicos e de política internacional, em que o neoliberalismo de Fujimori e o socialismo de Castillo se contrastam agudamente.

Outra variável central no processo eleitoral será o contraste entre dois elementos que cercam o imaginário social peruano recentemente: o anticomunismo e o sentimento antielites. Com as marcas do conflito sangrento entre o governo Fujimori e o Sendero Luminoso ainda presentes na memória social peruana, a associação do comunismo ao terrorismo permanece lugar comum no pensamento dominante e na mídia do Peru. Isso pode se apresentar como um artifício valioso no arsenal de Keiko Fujimori, ainda que nos resultados eleitorais do 1° turno, este anticomunismo não tenha tido o fôlego necessário para escalar a serra peruana e se apoderar do Peru rural.

Em contrapartida, a somatória da retórica antissistema que impulsionou Keiko Fujimori duas vezes ao 2° turno pode desta vez ser uma fraqueza. Filha de um ex-presidente e figura conhecida da política institucional peruana, neste segundo turno Fujimori se mostra em uma condição menos favorável de disputa da consciência popular como outsider, quando seu adversário constrói sua imagem pública como o candidato dos camponeses pobres abandonados pelas elites costeiras, das quais ela própria faz parte.

Neste aspecto, o Peru costeiro, especialmente Lima, se vê em uma situação desafiadora, com ambos seus candidatos derrotados e um 2° turno traçado entre dois supostos “outsiders” da realidade limenha, o centro político e econômico do país, chega profundamente desmoralizada ao cenário político apresentado pelas urnas no último dia 11.

Ainda não se sabe se as elites cosmopolitas de Lima já realizaram sua “escolha muito difícil”, embora as evidências indiquem que apoiarão sem pestanejar a nova forma do fujimorismo encabeçada por Keiko Fujimori como um recurso final contra o avanço do candidato do Perú Libre. Também é cedo para se chegar a uma conclusão se a mensagem de Castillo será capaz de descer os Andes e alcançar as periferias precarizadas de Lima e demais cidades costeiras peruanas, porém o que já se mostra visível é a derrota política de uma Lima rica e cosmopolita que deu as costas ao Peru camponês e indígena.

*Carlos Eduardo Landim é graduando em Relações internacionais na PUC-SP e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC)

*Lucas Arean é graduado em Relações Internacionais na PUC-SP e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC)

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.