As lições do Haiti

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Assim como ocorre no “laboratório” Haiti, a intervenção no RJ têm como projeto realizar aquilo que se convencionou denominar “reforma do setor de segurança”. Nesses contextos só podemos responder à pergunta: – segurança para quem? –  se focarmos as dinâmicas políticas, sociais e econômicas que moldam as relações entre as elites, os grupos armados e aqueles que são marginalizados. É preciso abordar o tema da segurança, não como um tipo de valor universal, mas como uma tecnologia política de construção de uma ordem de matriz sócio-econômica liberal.

por Reginaldo Nasser e João F. Finazzi

*Desde 2004, quando o governo brasileiro tomou a decisão de participar da missão da ONU que substituiu as tropas norte-americanas, francesas e canadenses no Haiti, consolidando o golpe contra o presidente Jean-Bertrand Aristide, o engajamento do Brasil tem sido realçado por Forças Armadas, ONGs e polícias que lá se envolveram – e mantiveram ou estreitaram seus vínculos. Trata-se de importante experiência a constar nas suas trajetórias profissionais, e um valor simbólico a ser considerado na busca por projeção dentro (e fora) daquelas organizações, assim como na burocracia do Estado e no “mercado da segurança”.

Isto porque, a partir da “experiência haitiana”, supõe-se que houve aquisição e/ou o aperfeiçoamento de habilidades e saberes relacionados ao controle e à pacificação sociais, os quais poderiam ser adaptados e executados em qualquer outro contexto (urbano) tido como similar àquele encontrado, principalmente, na cidade de Porto Príncipe, como é o caso do Rio de Janeiro.

Em 27 de fevereiro, o interventor Walter Braga Netto disse que o Rio (cidade ou Estado?) é um laboratório, sugerindo que os esforços poderiam ser empregados em outros lugares. Na verdade, é muito mais do que isso. Assim como ocorreu e ocorre no “laboratório” Haiti, no Brasil a intervenção da União têm como projeto realizar aquilo que se convencionou denominar  “reforma do setor de segurança”: um amplo conjunto de esforços que incidem sobre uma “melhoria na utilização” de armamentos, equipamentos, treinamentos, estrutura burocrática e formação intelectual de militares, policiais e agentes carcerários. Em teoria, esses esforços visam promover valores liberais como democracia, direitos humanos, estado de direito e boa governança, frente à constatação de graves violações de direitos humanos e civis.

Em Porto Príncipe, as chamadas “gangues urbanas” tornaram-se objeto dos esforços de reconstrução no contexto da Minustah. Estes grupos heterogêneos, assim como em parte as polícias, se articulam em grande medida ao redor de programas nacionais e internacionais de ajuda socioeconômica. São pouco armados e organizados e podem exercer, ao mesmo tempo, funções como de provimento de assistência social nos bairros pobres; defesa contra a violência de outras “gangues” ou de milícias; bases partidárias e militantes; ascensão socioeconômica para seus membros; e forças de achaque contratadas para se contrapor a adversários políticos ou econômicos. Assim como no Rio de Janeiro (como se constata a partir da declaração do ministro Jungmann¹), trata-se de grupos políticos que, muitas vezes, se vinculam a lideranças que concentram poder, dinheiro, influência em governos e domínio de territórios.

Na prática, embora as reformas no setor de segurança tenham sido feitas utilizando-se de uma retórica humanista, (proteção dos direitos humanos), o mesmo  não se pode dizer em relação aos resultados dessas ações. Entre 2004 e 2017 a quantidade de policiais triplicou e a população carcerária cresceu 440%, com cerca de 70% de prisioneiros provisórios. Um negócio lucrativo e disputado, em que se destaca a participação de think tanks e empresas privadas de segurança e de construção com contratos bilionários com o governo dos EUA, como DynCorpDFS Construction LLCPAE Contractor e Panexus.

Dois meses após despachar comentário sobre a função que a Minustah exercia em  conter a “reemergência de forças políticas populistas e contrárias à economia de mercado” no Haiti, em 28 de novembro de 2008, a então embaixadora dos EUA Janet A. Sanderson relatou a visita dos representantes de agências do Departamento de Estado para o combate às drogas e crimes. Segundo seu relatório, eles tiveram “dias intensos” inspecionando os principais projetos de reconstrução e se reunindo com os representantes das corporações contratadas. Quando chegaram à Academia da Polícia Nacional Haitiana, teriam ouvido do seu diretor: “Sem a assistência do governo dos EUA, a Academia não existiria”.

Importante também é levar em conta para a análise o telegrama do embaixador norte-americano no Haiti Timothy M. Carney em 6 de janeiro de 2006. Em mensagem a Washington, Carney relata encontro com líderes empresariais haitianos que pressionavam, frente o aumento de sequestros na capital, para o aumento do armamento das polícias e de uma maior presença militar na favela de Cité Soleil, seguida da sua reconstrução por meio de projetos de desenvolvimento socioeconômico. O embaixador fez questão de realçar que uma dessas lideranças já realizava projetos sociais na mesma favela que deveria, agora, ser ocupada. Seis anos depois, o affair Brandt viria a levantar indícios sobre a relação entre os sequestros e as disputas entre membros da elite empresarial. Clifford Brandt Jr., membro de uma proeminente família do Haiti, confessou ter sequestrado em 2012 os filhos do ex-sócio e CEO do Sogebank (antigo Banco Real do Canadá) Robert Moscoso.

Por outro lado, apesar de haver grupos que, de fato, praticavam homicídios, estupros e todo tipo de ações violentas, o contexto criado com as operações “espetaculares” nas favelas do Haiti facilitou as ações de perseguição, aprisionamento ou até mesmo de execução de muitos militantes de movimentos ou de “gangues urbanas” que contestavam privilégios e buscavam a efetiva implantação de direitos humanos básicos. Em suma, a intervenção da Minustah não acabou com os grupos armados urbanos, estreitamente ligados com a dinâmica político-partidária haitiana, mas alterou seu modus operandi, sua distribuição espacial, e suas lealdades, principalmente daqueles até então partidários do governo de Aristide. Com a insurreição armada e o golpe, ao tentarem se manter (ou ascender) em termos de recursos e poder, passaram a recorrer, em graus variados, à expansão das suas atividades, à adaptação relativa aos requisitos dos programas de ajuda econômica e à aliança (tácita ou não) com os indivíduos e organizações que passaram, agora, a oferecê-los – fortalecendo alguns grupos e enfraquecendo outros. A lógica da missão foi sintetizada pelo coordenador de um dos programas da Minustah em entrevista ao pesquisador Moritz Schuberth, da Universidade de Bradford: “Nós estabilizamos, depois, as agências, ONGs ou quem queira assumir o controle terão um campo fértil para trabalhar no desenvolvimento”

As narrativas adotadas pelos formuladores de políticas relacionadas aos projetos de  Reforma do Setor de Segurança, em processo de intervenção militar, querem fazer crer que são a-históricos e a-políticos. Mas, nesses contextos só podemos responder à pergunta: – segurança para quem? –  se colocarmos em foco as complexas dinâmicas políticas, sociais e econômicas que moldam as relações entre as elites, os grupos armados e aqueles que são colocados à margem da sociedade. Assim, é preciso abordar o tema da segurança, não como um tipo de valor universal, mas sim como uma tecnologia política de construção de uma ordem de matriz sócio-econômica liberal. Parafraseando Clausewitz, pode-se dizer que a segurança, assim como a guerra, não é outra coisa se não a extensão da política por outros meios.


¹“Eles [os interventores] lá [no Rio] encontraram 60 operações em carteira, prontas para ser deflagradas, por exemplo, dentro da Polícia Civil. E por que, em grande medida, não eram deflagradas? Ah, porque ali é o território de um político, porque aqui é território de um fulano, de um beltrano e assim por diante”

*Texto originalmente publicado no site do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU)