Destruição ambiental no Brasil: entraves para ratificação do Acordo Mercosul-União Europeia e interesses do agronegócio

Castanheiras queimam em Itaúba, Mato Grosso. Foto de Caio Guatelli.
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Alvo de significativa atenção internacional, a destruição ambiental no Brasil avança impunemente e tem sido mencionada como o principal entrave para a ratificação do Acordo Mercosul-União Europeia. Se efetivado, o acordo fará com que parcela importante, e politicamente muito influente, do agronegócio brasileiro, tenha um significativo ganho de mercado e se torne ainda mais competitiva na Europa. Mas, ao mesmo tempo, o setor do agronegócio e "seu lobby institucionalizado" tem apoiado, articulado e defendido o desmonte do ordenamento jurídico ambiental protagonizado pelo governo Bolsonaro e pelo Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Resta saber se essa emergente pressão econômica internacional, respaldada no discurso público de motivações de ordem ambiental, terá o potencial de alterar as configurações de força dos interesses do agronegócio  e a manutenção do atual avanço do desmonte das políticas ambientais do Brasil. POR ISABELLA LAMAS Como foi amplamente noticiado pela mídia nacional e internacional, as queimadas no Brasil foram tema do primeiro debate entre os candidatos à Presidência americana Joe Biden e Donald Trump no dia 29 de setembro. Joe Biden disse que "começaria imediatamente a organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia (...) aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas". O presidente Bolsonaro, bem como o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, responderam à proposta com os já recorrentes argumentos de “cobiça internacional” da Amazônia, de que o Brasil é vítima de interferências indevidas em questões do que seria uma “inegociável” soberania nacional. Enquanto a efetivação da proposta de Biden está obviamente condicionada a sua eleição, bem como ao cumprimento de promessas de campanha, na Europa parte da proposta mencionada por ele parece já se concretizar. Existe no âmbito dos países europeus um movimento importante que visa frear a efetiva implementação do Acordo Mercosul-União Europeia devido à má condução da política ambiental brasileira. O acordo vem sendo negociado desde 1999, e teve muitos entraves no caminho gerados particularmente pelo lobby que representava os interesses de elites produtoras agropecuárias, industriais e financeiras no âmbito dos países europeus e latino-americanos. Depois de 20 anos de negociações tensas, principalmente devido aos pontos relacionados à produtos agrícolas sensíveis para as partes, o acordo foi concluído entre ambas as organizações de integração regional em 28 de junho de 2019. É, sobretudo, um acordo de liberalização comercial, com a incorporação do acesso facilitado a contratos públicos, bem como disposições sobre o comércio de serviços. A atual fase é de ratificação nos parlamentos nacionais dos países, processo lento e que tem gerado muitos entraves para efetiva implementação do acordo por parte dos países europeus. No dia 7 de outubro desse ano, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que manifesta oposição a ratificação do acordo se não houver mudanças na agenda ambiental, expressando uma preocupação especial em relação à política ambiental do governo Bolsonaro. O texto diz que o Brasil vai contra os “compromissos feitos no Acordo de Paris, particularmente no combate ao aquecimento global e na proteção da biodiversidade”. Uma das grandes preocupações é que, no atual acordo, não há previsão de sanções, por exemplo, se os países não fizerem nada para impedir o aumento das queimadas ou permitirem a entrada de corporações mineradoras em terras indígenas. O vice-presidente do Brasil Hamilton Mourão comentou que medidas como essa avançam devido ao forte lobby de agricultores europeus, fazendo referência aos setores que defendem medidas protecionistas em detrimento de medidas de liberalização características de acordos desse tipo. Em setembro, seguindo decisões de não ratificação do texto do acordo pelos parlamentos da Áustria, Holanda e da região da Valônia, na Bélgica, o governo francês protagonizou mais um episódio de divergência com o governo brasileiro ao divulgar um relatório sobre os impactos do acordo. O relatório afirma que a entrada em vigor do acordo ocasionaria aumento dos desmatamentos e prejudicaria esforços de combate ao fenómeno da mudança climática. Na sequência da publicação, os ministérios brasileiros das Relações Exteriores e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento divulgaram uma nota conjunta na qual apresentam argumentos de contestação ao relatório que vai na linha da declaração de Mourão citada acima. Na nota, eles alegam que o viés protecionista existente na UE representa as reais preocupações dos que se opõe ao acordo. Terminam dizendo ainda que a não entrada em vigor do acordo “passaria mensagem negativa e estabeleceria claro desincentivo aos esforços do país para fortalecer ainda mais sua legislação ambiental”. A ideia de que existe um fortalecimento da legislação ambiental no Brasil é falaciosa. Particularmente nos dois últimos anos a situação do desmonte das políticas e do ordenamento jurídico-ambiental se agravou muito, tendo como um dos pontos centrais de deterioração o aparelhamento pelo governo federal (ou seja, interferências políticas e a tomada de controle de órgãos por meio de representantes à serviço de grupos de interesse específicos) de instituições centrais como FUNAI, IBAMA e ICMBio. Na direção contrária às alegações do governo federal que negam a dimensão do problema do aumento dos desmatamentos, e questionam a qualidade dos sistemas de monitoramento, pesquisadores/as do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Estocolmo publicaram uma carta na Science, uma das revista acadêmicas de maior prestígio no mundo, na qual afirmam que parte significativa das queimadas na Amazônia em 2019 e 2020 tem incidência em áreas de médios e grandes fazendeiros. Por meio da metodologia do cruzamento de dados de diferentes sistemas de satélite, eles mostram como as queimadas não estão relacionadas aos índios, caboclos e pequenos agricultores, como foi mencionado pelo presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano, mas sim à grandes apropriações de terras e desmatamento. Ou seja, existem evidências científicas de que as queimadas são uma sobreposição de vários fatores como condições climáticas de longos períodos de estiagem e seca e ação humana criminosa e que, portanto, há grupos que estão se beneficiando com elas. É evidente que os grupos de produção pecuária que estão diretamente envolvidos com o desmatamento na Amazônia não são representativos de todo o setor do agronegócio no Brasil. Mas, até aqui, os responsáveis por expandir a fronteira agrícola por meio do processo de privatização da terra via grilagem e desmatamento, têm sido largamente apoiados pelo governo federal, cuja atuação é marcada por uma grande intersecção entre poder econômico e poder político que penetra todo o funcionamento do sistema político brasileiro. A elite do agronegócio tem sua representação institucionalizada no Congresso Nacional através da Bancada Ruralista e de sua face mais organizada, a Frente Parlamentar da Agropecuária que reúne atualmente 284 parlamentares (39 senadores e 245 deputados). Esse é considerado o maior lobby no Congresso Nacional e tem tido grande força política para avançar os seus interesses e agendas em sintonia com o governo Bolsonaro e o Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Em reportagem da Agência Pública, Gustavo Carneiro, coordenador do Instituto Pensar Agro (IPA), a área de relações governamentais da FPA, explica que o IPA “é o que a gente chama de lobby institucionalizado: o instituto foi criado para que associações [de produtores rurais] tivessem voz única perante o governo. O instrumento para ter essa voz única seria a Frente Parlamentar”. A força política da bancada ruralista vem do seu poder econômico: em ano de pandemia e retração na produção de bens manufaturados, o superávit da balança comercial do Brasil de 2020 será impulsionado quase exclusivamente pelo agronegócio. No gráfico do Atlas of Economic Complexity da Universidade de Harvard, é possível visualizar que a soja é o principal produto de exportação do Brasil e representa aproximadamente 12% do total de exportações do país. [caption id="attachment_2391" align="aligncenter" width="890"]O que o Brasil exporta? Fonte: Atlas of Economic Complexity O que o Brasil exporta? Fonte: Atlas of Economic Complexity[/caption] Conforme explica Caetano de Carli, professor da UFRPE, o agronegócio enquanto modo de produção industrial agropecuário se insere no Brasil na década de 1960 durante o período de ditadura militar. Mas é sobretudo a partir de 1990 que vigora um modelo financeiro caracterizado pela inserção de corporações multinacionais no modelo de desenvolvimento do agronegócio brasileiro. Sendo assim, no Brasil, a produção pecuária nasce de um modelo escravista e colonial para servir a interesses estrangeiros e tem hoje sua conexão com o capital internacional revigorada através do agronegócio e da presença massiva de grandes multinacionais e do capital financeiro no campo brasileiro. Ou seja, não existe interesses de uma elite doméstica desvinculada aos interesses do capital internacional. Isso nos remete para um trecho menos notado da fala do ministro Ricardo Salles na tão citada reunião ministerial de abril. Além de descrever com grande nitidez o projeto de destruição ambiental do Brasil, Salles fala como o avanço da boiada serve também aos interesses do capital internacional: “passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx certamente cobrou dele, cobrou do Paulo”. Ou seja, a atuação do agronegócio brasileiro não pode ser dissociada das conexões entre poder político e econômico nacional e internacional que evidenciam a complexa estrutura da constituição de redes de poder globais hoje. Nessa linha, é importante colocar em questão as relações entre Acordo Mercosul-União Europeia e as elites brasileiras, em geral e do agronegócio em particular. A UE é considerada uma organização híbrida na qual existem elementos supranacionais, mas os seus aspectos de funcionamento de caráter intergovernamental apontam para a heterogeneidade de posicionamentos políticos, não só entre os estados, mas também entre grupos de interesses não-estatais. De maneira distinta, o Mercosul é uma organização de caráter apenas intergovernamental na qual essa heterogeneidade de interesses fica ainda mais evidente, algo que é recorrentemente apontado como um dos motivos que explicam o lento avanço da integração regional do bloco. De qualquer forma, tanto em um quanto em outro coexistem grupos de interesse diversos e de atuação transnacional que dependem do fôlego do seu poder de articulação política para avançar as suas pautas. Desde o começo do Mercosul, o Brasil possui, junto com a Argentina, um papel de liderança no bloco, mas essa relação está bastante abalada desde o início da presidência de Bolsonaro que já ameaçou inclusive retirar o Brasil do bloco. Durante a última cúpula de presidentes do Mercosul, Bolsonaro voltou atrás e disse que o bloco é “o melhor veículo” para a inserção internacional do Brasil. Essa mudança de posicionamento parece revelar a importância do Mercosul, e também de acordos comerciais de livre comércio como os firmados com a União Europeia, para poderosos grupos de interesse na política brasileira,  dentre os quais se destaca o lobby institucionalizado do agronegócio. Se efetivado, o acordo Merscosul-UE fará com que parcela importante, e politicamente muito influente, do agronegócio brasileiro, tenha um significativo ganho de mercado e se torne ainda mais competitiva na Europa. Resta saber se, no que diz respeito à destruição ambiental no Brasil, essa emergente pressão econômica internacional, respaldada no discurso público de motivações de ordem ambiental, alterará as configurações de força e análises de custos e benefícios dos interesses do agronegócio para a manutenção do atual avanço do desmonte das políticas ambientais no Brasil. Em outras palavras, a pergunta que fica é se possíveis custos econômicos para o grupo dominante do agronegócio brasileiro, em articulação com o capital transnacional, da não efetivação do acordo levará a uma maior pressão sobre os ministérios do meio ambiente e da agricultura para uma mudança de rumos em relação às políticas ambientais do Brasil.