Entrevista com o prof. Dr. Henrique Soares Carnerio

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Henrique Carneiro é Professor de História Moderna na Universidade de São Paulo e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). Sua linha de pesquisa atual aborda a história da alimentação, das drogas e das bebidas alcoólicas. No dia 27 de fevereiro realizou uma aula aberta na PUC-SP para apresetar seu mais novo livro “Drogas: A História do Proibicionismo”. A entrevista a seguir foi realizada por ocasião de tal evento.

Por Thiago Madeira 

1 – Como você avalia o atual processo de regulação das drogas no continente americano? Você acredita que essa é uma tendência global ou são casos isolados? O que você acredita que irá ocorrer daqui para frente neste contexto? Qual a influência disso para o Brasil?

Eu acho que há uma situação paradoxal. Uma situação que é ambígua ou até ambivalente, a gente poderia dizer, porque o proibicionismo tem elementos de corrosão evidentes, sobretudo no país mais importante, que são os Estados Unidos, onde a legalização da maconha já alcança a maioria da população norte americana e especialmente o Canadá, onde a legalização já é plena. Mas esse processo ao mesmo tempo convive com retrocessos muito importantes que ocorrem no próprio Estados Unidos, na medida que existe uma administração federal que é a do Governo Trump que se opõe a essas conquistas das legislações estaduais e está num conflito bastante forte com este processo, e sobretudo em países periféricos como é o caso do Brasil ou as Filipinas, onde há o advento de toda uma onda neoconservadora, até de extrema-direita, numa tentativa de reavivar o proibicionismo com uma nova severidade. Então é uma situação imprevisível porque há uma pressão econômica do ponto de vista da transformação dessa planta numa commodity internacional que vai transformando as condições da sua produção que antes eram artesanais, para uma situação de alta industrialização, em que há inclusive uma alta tecnologia até mesmo do ponto de vista da seleção genética a ela vinculada. Mas por outro lado, há também um crescimento ideológico de um puritanismo de inspiração em um fundamentalismo religioso, que também vem contribuindo para uma ameaça às liberdades que foram conquistadas. Então de fato é um pouco imprevisível o futuro. A gente tem duas perspectivas que são conflituosas e que estão em embate.

2 – Tendo em conta esse movimento da maconha como uma mercadoria legal, tanto no Uruguai quanto no Canadá, por exemplo, as empresas privadas parecem ter tido alguma influência no processo de regulação. Gostaria de saber se no atual sistema capitalista em que vivemos é inevitável que as empresas façam parte deste processo, e de que maneira ele ocorre.

Então, ocorre com enorme importância porque como a maconha vem se constituindo em um produto de alta rentabilidade, no que se chama inclusive nos Estados Unidos de “green rush”, que é uma espécie de corrida ao ouro da maconha, há uma série de empresas que estão investindo pesadamente nisso, inclusive da área tradicional das chamadas “indústrias do vicio”, que são as empresas da produção alcoólica e tabagista. No caso da alcoólica, a Constelation, que é uma das mais importantes empresas alcoólicas norte-americanas, já está comprando parcelas da indústria canadense da maconha. Então há efetivamente uma tendência no sentido de aumentar o investimento de capital nesta área e haver uma concentração desse capital em empresas muito grandes. Por outro lado, há um elemento que obstaculiza a especulação capitalista em torno deste produto que é a monopolização pelo Estado da distribuição no caso do Canadá, porque ao ser monopólio estatal o Estado estabelece as condições do preço, da disponibilidade, dos horários de venda, dos locais e etc. Então também é uma situação ambivalente, no qual há uma tendência para que ela se torne uma commodity como outra qualquer, ao exemplo do tabaco e do álcool, mas há alguns elementos que buscam limitar isso, particularmente a política de monopólio estatal na distribuição.

3 – Para terminar, você pode traçar uma perspectiva para o cenário nacional? Você acha que com o atual governo e suas políticas de extrema direita o processo de regulação da maconha enfrentará mais dificuldade ou ao menos a liberação do uso medicinal é inevitável, tornando-se o caminho para que essas políticas sejam implementadas mais cedo ou mais tarde no país?

Não necessariamente. Eu acho que o Brasil está na retaguarda deste processo, apesar do país ser possivelmente o segundo mercado da maconha no mundo, talvez o segundo país em população consumidora na medida em que o Brasil tem uma população imensa, um dos maiores países do ocidente. Agora aqui, a exploração deste mercado é realizada por setores tradicionais do comercio clandestino, quer dizer, do tráfico clandestino que é também associado ao sistema institucional inclusive da própria repressão. Então há aqui interesses muito grandes do ponto de vista econômico para que a legalização não ocorra, porque ela iria tirar o privilégio deste setor que hoje explora o mercado clandestino. E que não é de apenas grupos do crime organizado, facções criminosas, como o PCC, comando vermelho e outras. Estes daí são apenas setores de distribuição varejista ou mesmo que num certo nível de atacado, mas que não estão ligados a grande, digamos assim, rentabilização desse mercado, que é na esfera da acumulação financeira. E nesse âmbito, jamais no Brasil foi identificado qualquer setor que fizesse a lavagem do dinheiro do tráfico ou que acumulasse rendas a partir do tráfico. Então a existência do tráfico é também uma espécie de lobby pela manutenção da proibição.  

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